Vulnerabilidade Social e Pandemia

Capítulos de livros | Carlos Roberto Ribeiro
Publicado em 24 de Março de 2024 ás 11h 55min

No dia 16 de março de 2020, Roseli e eu estávamos retornando de viagem da praia de Maresias/São Sebastião, cidade do Litoral Norte de São Paulo. Na agenda estava mais uma viagem para Ilha Bela, outra cidade do Litoral Norte. Estávamos querendo aproveitar as férias até o último dia.

 

Porém, exatamente nesta data entrou em vigor o decreto que dispunha sobre a adoção de medidas de prevenção de contágio pelo COVID-19. Não teve outro jeito, ficamos o restante das férias em casa.


Meu retorno ao trabalho aconteceu em home office, algo atípico para quem trabalha na Assistência Social, mas logo retomamos os atendimentos presenciais. 


Antes de mais nada é preciso fazer um parêntese para desconstruir a ideia de assistencialismo. A Assistência Social é uma Política Pública tanto quanto Saúde, Educação e Habitação, por exemplo. Com a Previdência Social e a Saúde compõe o tripé da Seguridade Social. Atendemos as demandas de famílias que espontaneamente procuram acessar os serviços, programas e benefícios socioassistenciais e também elaboramos laudos, pareceres e relatórios técnicos para Órgãos, tais como: Ministério Público, Poder Judiciário, Defensorias, Conselho Tutelar.


Isto posto, quero falar um pouco das experiências vivenciadas no trabalho com famílias no Município de Santos, Litoral Paulista, durante o período da Pandemia de Covid-19.


No primeiro ano da Pandemia a situação socioeconômica que já não estava bem no país, agravou-se e fez emergir o que nós, trabalhadores sociais, já sabíamos e denunciávamos: a desigualdade social que, há tempos, vem sendo jogada para baixo do tapete. Percebeu-se o assustador número de famílias vivendo abaixo da linha da pobreza, sem o mínimo necessário para sua subsistência. Muitas/os trabalhadoras/es desempregadas/os, outras/os tantas/os que perderam o emprego em um momento tão crítico e as/os desalentadas/os que, de tanto desgaste físico e emocional, não reúnem forças para continuar a procura por reinserção no mercado de trabalho.


No mundo as pessoas se alarmaram, não só de ver os noticiários na TV, mas de ser ou ter amigas/os e parentes contagiadas/os. 
Não tive perda entre familiares, mas amigas/os, vizinhas/os e pessoas conhecidas perderam a guerra para o Corona Vírus.


Aos poucos as pessoas foram percebendo que não se tratava de uma “gripezinha”, conforme o desdém do governo federal, diante da gravidade da situação. Não era um surto nem uma epidemia. Havia tomado proporções mundiais, tratando-se, portanto, de um Pandemia.


Logo, havia sim a necessidade, assim como foi, mesmo contra a vontade de governantes, de ser decretado o distanciamento social como um dos meios de contenção do avanço do vírus. Por isso a necessidade de contenção que funciona quando é adotada logo no começo da pandemia. Nela a população é testada e os infectados são afastados. Essa medida precisa ser extremamente rápida e assertiva, caso contrário o vírus pode continuar se espalhando sem que se tenha conhecimento; a mitigação que deve ser adotada quando já se sabe que não há mais possibilidade de conter a doença. Nesse estágio, recomenda-se o distanciamento social e algumas medidas leves são aplicadas, como o cancelamento das aulas e eventos e fechamento de comércio no geral; já a supressão é uma forma mais rigorosa de combate a uma pandemia. Isto porque ela busca interromper totalmente a disseminação do agente transmissor da doença. Quando a supressão é adotada, acontece o lockdown, que passa a ser obrigatório para toda a população.


Mesmo com todos os cuidados com os protocolos e medidas de proteção, tive a experiência de ter sido infectado duas vezes, mas felizmente sem consequências graves e, aparentemente, sem sequelas.


No trabalho social pude fazer a acolhida e a escuta qualificada de famílias que já viviam em vulnerabilidade social pela pobreza ou extrema pobreza e que agora estavam migrando num processo que a sociologia chama de mobilidade social vertical descendente que, traduzindo em miúdos, significa a perda da renda, o que leva as famílias a migrarem para classes sociais com piores posições na pirâmide social e, no caso, os pobres perdem e/ou não conseguem acessar os direitos básicos, ficam sem os mínimos necessários para sua subsistência.
Juntou a esta situação a dificuldade de cumprir o distanciamento social, tanto pelo fato de terem que sair para ganhar o pão de cada dia, quanto pelo fato de muitas moradias terem apenas um cômodo onde residem cinco, seis pessoas, ou mais, entre crianças e adultas/os. Ou seja, numa moradia a infecção de uma pessoa significava a infecção de praticamente todas.


Cumpre dizer que meu lugar de fala, enquanto cidadão, é de quem nasceu e foi criado em Santos, de quem trabalhou por 18 (dezoito) anos no Porto e hoje está na área social. A cidade que se ufana por ser uma das melhores em qualidade de vida, também é uma das mais desiguais e injustas do Brasil. O Município de Santos, paradoxalmente, tem o maior Porto e a maior favela em palafitas da América da Latina. 


Na fase mais crítica da Pandemia pude acompanhar de perto o desespero, a dor, as lágrimas, principalmente de mulheres (chamadas pelo senso comum de mães solo) responsáveis por famílias monoparentais. Em outras situações tinham filhas e filhos chorando a perda, principalmente destas mães que além do vínculo afetivo, compunham a única fonte de renda familiar, na maioria das vezes proveniente de trabalho informal. 


É importante esclarecer que, embora haja uma tendência de culpabilização da família por sua vulnerabilidade e há quem equivocadamente ache que a família é a maior responsável por sua funcionalidade, a Constituição Federal de 1988, no caput do artigo 226 deixa claro que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Isto quer dizer que a família é a base, o alicerce, onde se erguem os pilares da sociedade, por isso precisa que, obrigatoriamente, tenha a proteção do Estado. Esta é condição ‘sine qua non’ para que ela possa exercer sua função protetiva. Sem a proteção do Estado a família não consegue proteger seus membros. A ausência do Estado nas áreas de maior vulnerabilidade social tem sido o maior violador de direitos dos cidadãos.


A proteção social básica passa por todas as políticas públicas, desde Emprego, Trabalho e Renda, Saúde, Educação, Segurança, Habitação e a Segurança Alimentar, esta, em suma, é a garantia de todas as dimensões que inibem a ocorrência da fome, é a disponibilidade e acesso permanente de alimentos.


Atendemos inclusive pessoas que trabalham, mas estes subempregos me fazem lembrar a música de Cazuza, “Um Trem para as Estrelas”. A partir do olhar do cantor sobre a Cidade Maravilhosa. Sua letra é tão atual e cabe em todos os recônditos do nosso país: “São sete horas da manhã, vejo Cristo da janela, o sol já apagou sua luz. Nas filas dos pontos de ônibus procurando aonde ir. São todos seus cicerones. Correm para não desistir dos seus salários de fome. É a esperança que eles têm neste filme como extras. Todos querem se dar bem, num trem para as estrelas. Depois dos navios negreiros, outras correntezas”.


Sabemos que a pandemia não veio para nos ensinar nada, ela aconteceu como consequência de nossas ações predatórias na natureza. 


Porém, este tempo tão sombrio em toda parte do mundo, está nos proporcionando, ainda que pela via dolorosa, a oportunidade de refletir sobre a fragilidade, a incompletude e a finitude da vida humana, refletir sobre nossas ações e responsabilidade na administração desta nossa casa chamada planeta terra. 


Ainda há tempo de depor as armas da prepotência, do ódio, do preconceito, e da desigualdade, pois mesmo sabendo que não será o fim da humanidade, está sendo o fim de muitas vidas e cada vida importa.


A Pandemia foi considerada por especialistas como uma doença de classe e antes dela estudiosos já falavam sobre os doentes de pobreza, porque pobreza e doenças se retroalimentam, inclusive com implicações no processo saúde-doença mental. Neste contexto, as desigualdades sociais se tornaram terrenos férteis para o avanço do COVID-19.


Portanto, penso devemos envidar todos os esforços para que, urgentemente, sejam diminuídas drasticamente e, em médio prazo, sejam erradicadas todas as formas de desigualdades em todo o mundo.


O triste é que, contudo, o mundo não saiu melhor da Pandemia como alguns vaticinavam. Parece que as pessoas estavam esperando a situação amenizar para voltarem a ser o que sempre foram. Há pessoas que continuam intolerantes, racistas, machistas, misóginas, LGBTfóbicas. Continuam retrógradas e se sentem legitimadas a expressar todo o ódio que trazem em seu âmago. Os países estão em guerra e já nem disfarçam dizendo ser em nome da paz, explicitam que é pela ganância mesmo.


Diante destas e de tantas outras experiências durante a fase mais crítica da pandemia, e agora também, cabe aqui uma utopia: que possamos fazer todo o bem que formos capazes, não só em tempos como o que estamos vivenciando, mas em todo o tempo, pois não sabemos o que o futuro nos reserva e se estaremos preparados para o enfrentamento aos revezes como este pelo qual fomos acometidos.


Nas escolas e universidades, nos falaram da importância da revolução industrial, mas está na hora em que devemos projetar o olhar para além do aqui e agora, projetar o olhar para a possibilidade de que em algum momento aconteça a última e definitiva e mais importante revolução. A revolução da mente humana. 


Alguém já disse que não há mal que dure para sempre. Por esta e pelas gerações futuras, mais amor. Quem ama cuida do Planeta. Fazendo isso cuida de si, cuida do próximo, cuida da saúde.


Parafraseando Lulu Santos e Milton Nascimento: consideremos justa toda forma de amor, porque toda forma de amor vale a pena, qualquer maneira de amor valerá!

Livro: Convivendo com a COVID-19

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