Vertigo

Contos | 2023/8 Contemplando a Saudade | Mateus Furtado
Publicado em 26 de Janeiro de 2024 ás 10h 45min

O sobressalto na cama faz com que Carolina olhe assustada para o relógio na mesa de luz: 03:37 da madrugada, atirados na sua cara sonolenta pelas letras vermelhas brilhantes daquele rádio relógio que Rogério havia deixado quando foi embora. Quanto tempo fazia? Podia ser uns três anos ou três meses, mas a dor no peito e a saudade remetiam a apenas três dias. Ou três horas?

Carolina se levanta, vai até a sacada, o ar gelado atravessa o roupão, arrepiando seus pelos cor de cobre. Ela pragueja contra o outdoor luminoso instalado no prédio ao lado que invade, sem pedir licença, as frestas das persianas desemparelhadas de seu quarto. Aquela maldita claridade a obrigou a instalar uma cortina blecaute na sala, onde passa muito tempo lendo e vendo séries, o que fez com que perdesse a vista de que tanto gostava.

Ela vai até a sala, mas não sem antes tropeçar em Frodo, seu fiel e esbranquiçado cachorro que adorava se enroscar no tapete puído do quarto. Tateia nas gavetas do aparador buscando a carteira de cigarros. Encontra na gaveta do meio; é o último.

Enquanto risca um fósforo - ninguém entendia por que ela não comprava um isqueiro; ela dizia que era para fumar menos – pensa naquele sonho estranho. O vapor adocicado que sai de seus pulmões, misturado ao gosto pastoso de quem acabou de acordar, juntam-se ao bater ainda acelerado de seu coração e à lágrima que teimava em coçar seus olhos sem se permitir escorregar pelo rosto. Tudo isso faz com que Carolina perceba a quantidade de sentimentos que vinham à tona por causa daquela escada enferrujada que vira naquele dia, mais cedo.

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Eram exatamente 11:45 da manhã quando chegou no local da exposição. Tinha lido no caderno de cultura que já estava nos dias finais e ela queria muito ver os quadros. Ainda que abstratos e, à primeira vista, sem sentido, a artista queria passar a ideia do que uma memória ou, ainda, a relação com um livro, pode extravasar pelo pincel e chegar à tela. Os sonhos também são parte importante naquele contexto. Ao ler isso, Carolina sussurrou para si mesma “é preciso conseguir dormir para poder sonhar” e praguejou, mais uma vez, contra o outdoor luminoso recém-instalado. Um dos quadros chamou muito sua atenção. Inicialmente parecia um borrão preto com as bordas riscadas, formando uma espécie de hexágono disforme. Quando se aproximou um pouco, ela conseguiu perceber alguns padrões arredondados como se fosse o fluxo sem sentido da vida. Em um canto da obra, Carolina enxergou o que parecia um dos rostos mais famosos das artes plásticas: a figura andrógina d’O Grito, de Munch, e não conseguiu evitar um sorriso tímido pela sua descoberta tão particular. Logo em seguida, um quadro de um vermelho vivo, angustiante, em que apareciam duas manchas grandes, que se encontravam como se fossem dois rostos se beijando. Abaixo, uma mancha menor e Carolina visualizou um coração com outro coração dentro.

Resolveu ir ao terraço, passou por aquelas banheiras velhas e sujas, cheias de musgos e água parada e se sentou em um canto, escondida, para pensar naquele quadro vermelho. Tudo remetia a Rogério ultimamente. Enquanto se perdia nesses pensamentos, o seu olhar confrontou a tão famosa escada em espiral daquela construção. Enferrujada, descascada, frágil e um pouco torta. Em um ímpeto, ela se levantou e saiu correndo dali.

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            Os gritos e risos de crianças despertam Carolina do devaneio sobre a experiência vivida mais cedo. Olha no celular: 04:22: “O que essas crianças estão fazendo acordadas a essa hora, meu Deus?” - ela não consegue compreender quem, por escolha própria, pode estar acordado naquele momento. Amaldiçoa, pela terceira vez no dia, aquele maldito outdoor que controlava seu sono melhor do que ela própria.

            Procura um cigarro, lembra que fumou o último, suspira fundo e pega um casaco no gancho próximo à porta. “Preciso parar de fumar”, pensa enquanto chama o elevador. Ao abrir a porta da rua, percebe que não está tão frio quanto parecia. Chega no boteco, compra cinco cigarros avulsos e uma longneck.

            Resolve caminhar sem rumo – embora soubesse muito bem o rumo que estava tomando. Ao chegar em frente ao prédio de Rogério, é impossível não lembrar da escada em espiral da sua cobertura, onde viveram momentos tão intensos e felizes, e que ficou tão viva depois da experiência no centro cultural no dia anterior. Ela toca no interfone: apartamento 812. São 05:13 da manhã e o tilintar do interfone pode ser ouvido por toda a quadra. Chama tantas vezes quanto possível. Por que insiste em fazer isso? Sabe que ele não vai atender. E não é porque não quer. Ela acende mais um cigarro, joga fora a garrafa de cerveja e volta para casa.

            Às 6h da manhã, o sol roubando a luminosidade do outdoor, Carolina sentada em seu sofá confortável, com aquela bomba relógio em suas mãos: o teste de gravidez. Olha para a tirinha e finalmente consegue chorar, um choro guardado, compulsivo, que não vinha desde o acidente de Rogério.

            Decide, em meio às lágrimas, que o bebê receberá o nome do pai.

Às vezes tinha a impressão de que tudo isso havia acontecido há uns três anos, mas o teste jogava na sua cara que fazia apenas três meses. Ou seriam três dias?

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