Vai e não peques mais
Contos | 2025 - JANEIRO - Novos horizontes. Poesias de recomeços | Gilmair Ribeiro da SilvaPublicado em 17 de Janeiro de 2025 ás 12h 59min
Chegou por volta de oito horas da manhã na repartição pública, onde foi recebido pelo chefe de expediente que lhe entregou a chave do seu novo cartório. Os demais servidores ainda não haviam chegado. Enquanto organizava seus objetos pessoais e ligava o notebook, recordou-se de ter resistido a transferência, mas prevaleceu a decisão hierárquica: - “O servidor é dono do cargo, mas o destino dele é atribuição da administração”, teria ouvido.
A arbitrariedade, nesses casos, vem sempre acompanhada de um afago: “precisamos de você para colocar a casa em ordem”, “aquilo está uma bagunça e somente você poderá resolver o problema”. Os servidores foram chegando atrasados, como sempre. Um a um, ao passar pela porta, estendia-lhe a mão e o cumprimentava desejando-lhe boa sorte; exceto um deles que ficou com a mão no vazio e, ato contínuo, ouviu em bom tom: - “Por favor, ao passar por mim no corredor não me cumprimente, não me estenda a mão, nem me fale bom dia, não sou seu amigo. Não me esqueci do que você me fez, e é bom que você saiba que eu tenho memória e dignidade”. Todos olharam surpresos e, logo, quiseram saber qual era a treta!
No serviço público a fofoca faz parte da paisagem e tem a importância e a celeridade dos documentos produzidos; foi assim que antes de meio dia já era de conhecimento de todos que há pouco mais de vinte anos, quando ingressara nos quadros da administração pública, ocasião em que a informatização ainda se iniciava nas delegacias de polícia; numa noite de sexta-feira fora escalado para fazer plantão policial noturno; e quando da primeira intervenção: primeiro boletim de ocorrência pelo computador, pediu ao Investigador Jordão que o auxiliasse no acesso do programa de registros de ocorrências, a que tinha total desconhecimento, tendo em vista que na delegacia onde então trabalhava os feitos eram realizados ainda na máquina de escrever. Jordão foi taxativo: “meu caro, não tenho costume de dar aulas para ninguém, você é o professor”, e completou: “se não sabe entrar no programa, use máquina de escrever”. Houve um breve bate-boca entre ambos, que foi mediado pelo delegado que resolveu o problema dando-lhe a assistência necessária.
Fato revelado, o dia seguiu tenso - um climão. E como sempre acontece, as fofocas ultrapassaram as paredes da repartição pública, viraram samba-enredo e ganharam a Sapucaí. Na ocasião, Jordão, provavelmente rememorando os fatos, respondeu com humildade:
- Cara, como você é vingativo! vamos ser amigos, eu te respeito, cometi um erro – reconheço - mas gosto de você. E mais tarde o convidou para almoçar na companhia dele numa empresa aonde “se comia na faixa”.
Apesar de ser um servidor público respeitável com relevantes serviços prestados à sociedade em mais de duas décadas de efetivo exercício, o Escrivão Benjamin Ribeiro, ainda era visto com reserva no círculo de conversas do grupo de profissionais da área de segurança pública, que se reunia após o expediente no bar do Frazão, localizado a quatro quadras da delegacia de polícia, para jogar conversa fora.
De temperamento marcante, mas discreto, embora, considerasse dispensáveis esses encontros semanais; valia-se da prudência que lhe era peculiar para fazer o social; ainda que nesses momentos raros ouvisse brincadeiras inadequadas: “chegou nosso comunista”, ou “bem-vindo professor”: que realmente era, pois lecionava no período noturno as disciplinas de filosofia e história, na escola pública.
Dono de um estilo intelectualizado, tinha convicções fortes e argumentações embasadas, sempre em defesa dos menos favorecidos - diretos humanos, igualdade de gênero, luta contra o racismo e homofobia, desigualdade social; esses seus temas preferidos não pautavam as conversas de policiais, tanto que no mais das vezes os incomodavam. Por conta disso, aprendeu cedo que a posse e porte de livros era pecado mortal nas rodas de conversas; principalmente entre “os tiras” como os investigadores se autodenominavam; lá o papo era outro: prisão, valentia, o sucesso com mulheres; talvez seja por isso mesmo que jamais tenha visto em mais de vinte anos de serviços prestados, um companheiro de ofício manuseando, sequer um livro.
Entretanto, sem perder a compostura, rebatia as brincadeiras maldosas com bom humor: - “Sou daqueles que não escolheu o lado mais fácil da história”. Ou “gosto mesmo de livros”, e citando Caetano Veloso completava: “É só um jeito de corpo, ninguém precisa me acompanhar”.
Certo dia, prestando atendimento a uma psicóloga que seria ouvida na condição de vítima num inquérito de roubo de veículo, ela o indagou: “você tem uma sala humanizada; obras de arte na parede, estante de livros, boa música em volume adequado! – como conseguiu construir uma ilha humanizada nesse caos? Benjamim sorrindo respondeu que “era apenas uma questão de estilo”.
Mas foi exatamente nesse caos, entre conflitos e contradições que o escrivão Benjamin Ribeiro encontrou sua grande e duradoura amizade na profissão: O investigador Joselino Jordão, o “Jordão” era o oposto de Benjamin, e, inclusive, amigo dos “Tiras”, seus desafetos; mas este, encontrou no escrivão a oportunidade que lhe faltava para ver seu trabalho reconhecido, já que era bronco, prepotente, sem instrução. E por ter pouca habilidade na escrita, apresentava, no mais das vezes, relatórios sofríveis nas conclusões de investigações importante; um amontoado de palavras sem sentido, recheadas de vícios de linguagem e repetições desnecessárias, assim como faziam também os demais investigadores – suas referências; além do que, apesar de seus 30 anos na profissão, ele era um pouco ingênuo, e absorvia cegamente as orientações gerais, nem sempre fundamentadas, e, no mais das vezes, insensatas, arbitrárias e desnecessárias.
Mas, Benjamin, gostava de seu estilo espontâneo, direto e sem interesses exclusos, considerando-o honesto e confiável; e, por conta disso, o aconselhava sempre a não cometer arbitrariedades, para não responder a processos e sindicâncias como acontecia em muitos casos com frequência. As vezes era ouvido. Moldá-lo não era tarefa fácil, pois era um produto do meio
Mas era mesmo no desenvolvimento de diligências que as divergências se manifestavam: - “Benja, tem uma parada que você precisa entender: existe dois tipos de filho da puta - tem aquele que é filho da puta mesmo; esse tem que ser quebrado ao meio, tem que se foder; mas existe um outro que é O NOSSO filho da puta, entendeu?”. Benjamin discordando ponderou: “crime é crime, não investigamos pessoas, mas atos criminosos, e lidamos com fatos”.
- “pô Benja, o cara é nosso informante!”
Numa outra ocasião Jordão sentenciou: “Preste atenção no que vou dizer, as coisas tem que funcionar mais ou menos assim: “para os amigos: a lei; e para os inimigos: o rigor da lei” – Benjamim discordando outra vez explicou: - “Não vá na desses caras, são outros tempos, os caras mais antigos vêm de um tempo de abusos e intimidações, quando apenas uma confissão valia, hoje tem que se observar o estado democrático de direito, a ampla defesa, não faz sentido confissão sem provas”. E assim os dias se sucediam.
E eles foram se acostumando com essas conversas, tanto que acabaram se completando; um escrevia muito bem, fazia boas interpretações, trabalhava no limite da lei, e o outro tinha boa vontade, seguia a orientação do escrivão, buscava testemunhas, procurava evidências, e ajudava na produção de provas. E mesmo com tantas diferenças entre ambos, pessoalmente Benjamin, gostava do jeitão ingênuo, espontâneo e honesto de Jordão.
Iniciou ali então uma grande amizade logo no primeiro dia, quando Benjamin, mesmo desconfiado, aceitou a sugestão de Jordão, e então durante o expediente foram almoçar juntos numa empresa, onde comiam de graça - a chamada carteirada. Por cálculo financeiro, há empresas que “colaboram” com a polícia servindo alimentação a alguns policiais diariamente, pois a manutenção de uma viatura caracterizada nas imediações em tais períodos é eficaz para inibir ações criminosas, a baixo custo.
Jordão fazia o trabalho com entusiasmo, e quando empenhado numa investigação importante, repetia as mesmas coisas: “Gosto de fazer serviço de campo, escrever é coisa do Benja que é intelectual”, nesse momento o escrivão já sabia que alguém seria arrastado pelo cabelo, ouviria gritos e tapas na mesa e minutos depois seria apresentado um investigado confesso para depoimento; havendo a necessidade de realizar um trabalho minucioso de inteligência para a busca de indícios e produção de provas. Pensava: “Faz parte”
Em outro momento o prestigiado investigador, com autoridade, anunciava convicto: “nosso serviço de inteligência revelou a autoria do crime”, Benjamin, antecipadamente deduzia que um alcaguete havia procurado a investigação e delatado os autores e as circunstâncias do crime. Nesse momento já se preparava de antemão para refazer o relatório vindo da investigação, porque aquele que seria apresentado pelos “tiras”, certamente seria peça imprestável.
Com o passar do tempo, embora Benjamin e Jordão pensassem a sociedade totalmente diferentes e às vezes fizessem essas discussões com paixão, havia muito carinho de um pelo outro; e por ironia, tornaram-se amigos de verdade, embora algumas iniciativas dos investigadores fizessem o culto escrivão recordar da narrativa do clássico “O corcunda de Notre Dame”, onde em determinado momento se lê: “A justiça de então pouco se importava com a clareza e transparência de um processo, desde que houvesse um réu para ser enforcado, estava tudo bem”. Num exercício mental, diante de um riso contido ele substitua processo por inquérito e justiça por polícia.
Mas foi naquele primeiro dia, ímpar e de conflito que ocorreu a reconciliação, até então inesperada, quando por volta de treze horas, percorriam a rodovia ladeada por Canaviais, tendo a condução da viatura ficado a encargo do agente Vitorino; numa certa altura Jordão gritou: PARE! Vitorino estacionou a viatura já com a arma em punho, assim como Benjamin; Jordão desceu correndo do veículo oficial e dirigiu-se ao centro da via pública, onde com um pedaço de papelão pegou uma enorme aranha, removendo-a de volta ao canavial. Passada a tensão inicial, quando Jordão já retornava ao veículo oficial, Vitorino, ainda de olhos arregalados, comentou: “pode isso, Benja! - o cara trata mal as pessoas e defende animaizinhos indefesos!” Ambos riram muito.
Depois desse dia, a paz reinou e houve uma cumplicidade entre todos, Jordão estava sempre de bom humor e contava suas estórias, no final das quais sentenciava: “se tiver que escolher entre duas coisas, Benja, seja corrupto, mas não seja alcaguete, o corrupto todo mundo sabe, faz mal somente à ele próprio, não envolve ninguém, já o alcaguete, prejudica a vida dos outros para levar vantagem”. E digo mais: “a delação é um desvio de caráter”, portanto: “Aproveita-se a delação e despreza-se o delator”.
Mais de vinte anos após os fatos iniciais, numa sexta-feira pós carnaval, foram escalados, coincidentemente, para o plantão noturno; entretanto, eram agora amigos que guardavam, de certa forma, cumplicidade e lealdade, conhecedores do programa e plataformas de registros de ocorrências e com sentimentos em comum - Ambos detestavam fazer plantões em finais de semana; mas o lado bom da situação é que, ao menos, poderiam jantar juntos e na faixa na empresa que funcionava em turnos ininterruptos de vinte e quatro horas.
E foi uma noite terrível, por volta de meia noite, já estavam realizando o terceiro flagrante, feito demorado, em que os funcionários se obrigavam ao revezamento para o jantar; Benjamim e Jordão saíram então no ultimo turno e se dirigiram a rodovia em direção à empresa, ambos morrendo de fome. Num dos bairros afastados da cidade, passaram por dois rapazes que, aparentemente, fumavam baseados; um deles, em forma de deboche, assoprou a fumaça em direção a viatura soltando, em seguida, uma sonora gargalhada. Rapidamente, Jordão os interceptou, desceu da viatura de arma em punho – “Mão na parede, vagabundo”; “Perdeu!” “Perdeu!”. Benjamim incomodado, tocou a costela do amigo: “ficou maluco!” Estamos fazendo o terceiro flagrante na noite, e você quer levar mais um! Os colegas vão nos matar!
- Deixa, Benja, que eu resolvo isso!
Jordão, em revista aos dois rapazes, encontrou nos bolsos de um deles, o de cabelos pintados de vermelho dois baseados e dez reais em espécie, já com o outro, magrinho raquítico que o acompanhava apenas o baseado a que fazia uso. Em seguida, levantando a qualificação de ambos, consultou a central e soube que o de cabelos pintados de vermelho estava na condicional – este, de ouvido atento implorava:
- “senhor deixa eu ir embora”, “não posso ser apresentado à delegacia”, “estou na condicional”, “não posso ser preso”, “eu sai da cadeia e deixei o crime”, “levei a mina para a minha goma”, “ela vai ter nenê”, “preciso cuidar do meu filho”.
- Velho, o corcunda deve saber onde se deita!
Mas foi assim que Jordão então, lembrando-se das indagações de Benjamim, solucionou o problema a seu modo:
- Pois bem, vou dar-lhe duas opções, você é quem vai escolher: preste bem atenção - A primeira opção:
- sou um policial, surpreendi você na posse de drogas, e embora seja pouca a quantidade, entendo que você repartiu ou distribuiu ao rapaz que o acompanha fumando baseado, devendo ter vendido a bagana por dez reais que foram encontrados em revista no seu bolso, nesse caso vou ter que te apresentar na delegacia para que seja feita a prisão por tráfico de drogas, quebrando ainda a sua condicional, pois entre os verbos do crime de tráfico lê-se “distribuir”, “repartir”, pois o crime se caracteriza não pela quantidade, mas pelas circunstâncias.
- A Segunda opção é a seguinte: Eu não sou investigador, sou um padre, e isso que encontrei no seu bolso não é droga, é hóstia.....
Qual das opções você escolhe?
O rapaz nem pestanejou:
- A segunda opção, senhor.
Jordão então entregou os dois papelotes ao rapaz de cabelos pintados de vermelho, dizendo apenas em bom tom, FORÇA!
O rapaz então engoliu ambos os papelotes, oportunidade em que, olhando para aquele homem rude, de meia idade, careca e de botinas, não tinha dúvidas de que não se tratava do Arcanjo Miguel, ou de qualquer anjo enviado, mas agradeceu depois ao criador quando sentiu nos ombros dois tapinhas fraternos, seguidos da sentença libertadora:
- “Filho, "Perdoados são os teus pecados”. “Vai e não peques mais."
Gilmair Ribeiro da Silva, (Piracicaba-SP), Professor da rede pública do Estado de São Paulo