ÚNICO AMIGO

A professora Ana Fernanda, num raro momento de intimidade, caminhava solitária pelo pátio da escola pública com as mãos no bolso do jaleco, não que desejasse estar ali, mas não obstante, era uma das regras impostas aos professores em exercício em escolas de período integral, cuja exigência era que nos intervalos alunos e professores se interagissem, contrapondo a opinião dos alunos, que nunca foram ouvidos sobre isso (e... dá-lhe protagonismo!); providencial obviedade que qualquer pessoa de inteligência média deveria saber: que nesse momento de  total liberdade, nenhum aluno deseja a inconveniente presença de professores atropelando suas conversas ou jogos. É fato que uns fogem rapidinho, outros suportam por educação.

Perdida nos seus devaneios, ela via ao longe, que os alunos se dividiam inconscientemente em tribos, e esses grupos pouco se misturavam. E é sempre assim:  no pátio da escola, na sala de aula, no horário da saída e até mesmo nos rolês distantes da escola. Naquela escola, inclusive, havia muitos alunos com laudos que revelavam deficiências diversas, resultantes em dificuldades de aprendizado, havendo ainda outros tantos que não apresentavam laudos, porque as famílias ainda não conseguiam aceitar e conviver com a deficiência. O mais curioso, no entanto, é que todos eles se identificavam e logo que batia o sinal para os intervalos ou almoço, eles se juntavam, independente das séries em que estavam matriculados. A burocracia e as plataformas oficiais do governo, bem como os gestores, esses sempre submissos como quem exerce função de governo e não de estado, chamam isso de socialização. E na sociedade em geral, quem é contra ensino de sociologia, filosofia, história também pensa assim.

 Enigmaticamente, a professora Ana Fernanda, foi transportada, como numa visão espiritual, ao ano de 2018, e já em transe estava no interior da escola Carlos Marighella, sendo uma unidade pequena, com apenas seis salas de aula, fato que facilitava o controle da disciplina e os índices de aprendizado eram satisfatórios;  tendo em vista, inclusive, que nas instalações, segundo diziam os mais antigos, funcionava, na década de 1950,  uma unidade pública que atendia à outra finalidade; por isso mesmo tratava-se de um barracão comprido comtemplando três classes de aulas em ambos os lados, seguidas de um lado por uma pequena biblioteca (que funcionava) e de outro a sala de informática, e, centralizado aos fundos aguardava um palco improvisado. Já na parte da entrada, próximo ao portão restava as instalações da secretaria e salas da diretora e da vice-diretora.

Alegoricamente, reencontrou o menino Rafael, do sétimo ano B, cuja a transferência para a denominada escola havia ocorrido no segundo semestre daquele ano; viera, segundo constava, de uma escola da mesma região, trazendo um histórico de dificuldades no aprendizado. Rafael, talvez pelo amadurecimento provindo das agruras da vida, não se misturava com aos de iguais condições; a bem da verdade não se misturava com ninguém: falava pouco, sentava-se nas primeiras carteiras da lateral onde se instalavam as janelas, e ficava tentando desenhar o tempo todo, ou no mais das vezes, dormia. Todos sabiam, no, entanto, que ele morava com a mãe que era viúva e a ajudava nas vendas de verduras e hortaliças por uma questão de sobrevivência. Alguns professores até encomendavam verduras ´buscando ajudá-lo.

Certo dia, no transcorrer da aula de ciência que era sua habilidade, percebeu que Rafael chorava copiosamente. Duas meninas que o ladeavam, tentaram saber o motivo de seu infortúnio, e, por vezes, o consolar; mas não obtiveram sucesso na iniciativa. Foi então que a professora interveio:

- Rafael, o que está acontecendo?

 Ele, porém, disse apenas:

 - Nada!

 E, sequentemente, se debruçou na carteira e começou a chorar ainda mais; foi nesse exato momento em que bateu o sinal anunciando o intervalo. A professora, percebendo que, nas atuais condições, ele era o último discente a deixar a sala de aula, já que desejava ficar ali sozinho, utilizou a boa relação que mantinha com o menino, indagando-o agora na intimidade de maneira carinhosa:

- Meu garoto, fale o que está acontecendo!

Erguendo a cabeça, limpando as lágrimas no braço, ele disse com certa timidez:

- Dona, meu cachorro, o Pluto, está doente e eu tenho medo que ele vai morrer!

Um filme naquele momento passara na cabeça da zelosa professora: a vida difícil na infância, turbulência, conflitos familiares; mas dominando o impacto emocional, tentou ser pragmática e se deixar guiar pela racionalidade, e, nesse espírito, perguntou “se o cãozinho havia sido medicado”, o menino respondeu que sim, acrescentando que sua mãe o levara ao veterinário, mas era exatamente por isso que ele estava chorando, já que a mãe, até então, não atendera suas ligações.

- Ah! Não!”: respondeu a professora, é isso mesmo que tem que se fazer nesses casos, pois o efeito da medicação fará com que o Pluto retorne ao seu estado normal; por isso mesmo, a mãe, de repente, está envolvida na consulta e não pode mesmo atender ao telefone!

Em seguida a professora contou a história de seu próprio cachorro que havia ficado muito doente, e sendo medicado, logo voltou saudável para casa e estava lá fazendo festa todos os dias quando ela chegava em casa depois das aulas. Ato contínuo, o menino Rafael respondeu:

- Profe, a senhora não entende, ele é meu único amigo!

A professora perdeu a fala. E nem ainda havia se recuperado do choque provocado pela revelação do garoto, aconteceu algo que desfez a atmosfera que a cobria, exatamente quando a música do vento soprava aos seus ouvidos uma das mais belas histórias que provocava sua memória afetiva, foi quando sentiu um leve toque no seu ombro, no momento exato em que soava o sinal estridente, como nas fábricas dos anos 1950, dando término ao intervalo. Os fatos simultâneos a libertaram do transe temporal, e então pode se virar objetivando confirmar quem a tocara, momento mágico em que comtemplou na face de Rafael um sorriso que a marcara para sempre, ele era o novo aluno da escola, que, ao vê-la à distância, apressou-se em aproximar-se da professora para cumprimentá-la cordialmente.

(Gilmair Ribeiro da Silva)

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