Uma noite destas, no balanço de minha área.

Prosa Poética | Iziz De Andrade
Publicado em 14 de Fevereiro de 2022 ás 19h 15min

A noite está calma, estranhamente silenciosa. Estou sentada aqui fora, apreciando a lua enorme e sangrenta, assustadoramente amiga, íntima.

Uma paz me envolve, entorpece.

Lá dentro, todos dormem. Aliás, nesta parte do mundo, neste instante, noventa por cento das pessoas dormem, será porque são duas e quarenta e cinco da manhã?

De repente uma brisa suave toca meus cabelos e traz junto de si um perfume de flores, inebriante, inquietante que me é estranhamente familiar, mas por mais que eu tente, não consigo identificar. É tentador, sedutor.

Fecho os olhos, na tentativa de associar a alguma flor que eu conheça o perfume, respirando profundamente e devagar.

E meu corpo reage, estreme, arrepia e derrete.

Já não estou mais aqui, e o coração bate descompassado, assustado, chega dar a impressão que vai sair pela boca ou vai estourar.

Corro desesperada, tropeçando, machucada, cansada, exausta, mas o instinto me avisa que não posso parar.

As vozes ecoam próximas, acompanhada dos latidos ferozes de cães e o terror me abraça com braços de aço, sufocado minha respiração.

A lua atravessa as árvores, infiltrando na penumbra, seus raios vermelhos, sangrentos, agourentos.

As pedras escorregam traiçoeiras, misturadas as folhas podres, galhos e espinhos que rasgam meu vestido, sujo, molhado, grudando em minhas pernas dificultando a corrida desenfreada, sem rumo, na ânsia de somente fugir.

Meus pés descalços sangram.

Tropeço emaranhada em cipós soltos pelo chão, caio batendo o rosto no nos galhos secos, negros, espalhados por toda extensão. A dor se espalha e fica presa no grito seguro na garganta com o ultimo do esforço para não ser encontrada.

As vozes se aproximam, tenho de levantar e continuar. Num segundo, meus olhos se prendem a uma pedrinha ao alcance da mão, branca que se destaca de todas as outras no meio da escuridão. Cato ela num gesto desesperado, aperto ela com a mão e a levo junto ao coração.

Me levanto, juntando todas as forças que ainda me restam e novamente me ponho a correr.

Abruptamente a mata se abre e mesmo na noite escura, posso ver o vasto campo aberto, desesperadoramente aberto, sem ter onde me esconder e nem como voltar aos braços protetores das árvores.

Mas não tem volta, continuo a correr e correr, os gritos se aproximam mais, rápido demais, alucinadamente autos demais. Veem carregados de ódio, de urgência, de descontrole. Posso ouvi-los sem olhar para trás, sentir o medo escorrendo em minhas veias, se espalhando, fazendo o bater de meu coração ecoar em meus ouvidos, quase mais forte que as vozes de meus perseguidores.

E novamente tropeço, agora meus joelhos também sangram, meus cabelos longos molhados e desalinhados grudam em meu rosto ferido, e atrapalham minha visão.

Meu cérebro grita: Levanta, corre, levanta...

Mas é tarde demais, sinto uma dor lacerante na perna e entre os cabelos vejo o cão que grunhindo joga a perna pra lá e pra cá.

Como que regurgindo da terra aparece meus algozes, estapeiam, chutam, vociferam e me agarram com tamanha brutalidade, que por segundos o mundo se perde em uma grande escuridão. Já não sei o que dói mais, ser arrastada pelas pedras, pelos espinhos, pelos cabelos.

Meu vestido em frangalhos, já não cobrem nem metade do que deveria encobrir.

Nem isso me importa mais.

Estes homens gritam desconexos, mas em alguns momentos consigo entender no meio de seus ódios cuspidos as frases: Matem a bruxa.  Assim teremos salvação.

Quero explicar, me defender, mas nada sai de mim a não ser gemidos desesperador

Queria dizer que não sou isso. Que não tenho culpa se, desde que nasci, consigo ver além do tempo, do vento. Dizer que sou arredia e esquisita, por ter sido abandonada, viver de esmolas e pequenos roubos nas beiras da estrada, e achar abrigo nos cantos da mata, conversar com as corujas companheiras nas noites sem fim.

Minhas lágrimas já nem escorrem mais, quando chegamos no tronco, que preparam para me amarrar. Me arrastam, a dor dos braços amarrados para trás, não me deixam defesa alguma, a não ser chutar e espernear.

Estranho esse momento, paro de ouvir os gritos destes homens, enxergo seus rostos em fúria, suas bocas abertas desfiguradas, mas não ouço som algum, e em meio a esta loucura lembro da pedrinha branca, que mesmo com tudo que se passou ainda está em minha mão.

Fechada, quase encravada em minha palma, ela ainda está ali. Quase que faz parte de mim.

Fecho os olhos devagar, não entendo o que estão a perguntar. Sinto novamente a brisa que me toca, me envolve. E vem aquele cheiro que me é peculiar. Flores de Muguet, colhidas frescas, amassadas, misturadas. Numa noite como essa.

Abro os olhos devagar, pela última vez contemplo através da fumaça que começa a se erguer e me aquecer os pés, vejo a lua enorme, sangrenta que agora parece sorrir para mim. E tudo vira silencio com cheiro de flores de Muguet.

Abro os olhos devagar. Estou no balanço da área acolhedora de minha casa, envolta por aquele cheiro gostoso da flor que nunca vi.

Suada, cansada, como se não fosse só um sonho o que acabou de se passar.

Sorrio e digo para mim mesma: Calma menina você está em seu lar.

Respiro devagar e me recrimino por me deixar dormir naquele lugar.

Balanço a cabeça, levanto e espreguiço.

De pé, meu coração dispara, minha alma gela, arrepio...

Abro a mão bem devagar ... incrédula vejo na palma machucada, molhada de sangue de tanto apertar, a pedra branca e pequena misturada de folhas apodrecidas esmagadas. A mesma da mata, que em meus sonhos, consegui ajuntar.

 

Obs.: Esta prosa poética faz parte do livro Iziz de Andrade e Convidados

Comentários

Enredo fantástico. Mas, me deixou com aquele gosto de quero mais!!! Haverá próximos capítulos?

| 16/02/2022 ás 07:07 Responder Comentários

Rssss... obrigada.... quem sabe??? Se gostaram.... pode vir mais com certeza....

| 16/02/2022 ás 15:40 Responder Comentários

Já estou ansiosa para os próximos contos... Ficou lindo!

| 16/02/2022 ás 20:44 Responder Comentários

Sensacional! Pelo que vejo a amiga não se separa de uma pedrinha branca! rssss!

ENOQUE GABRIEL | 04/04/2022 ás 16:03 Responder Comentários
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