Um segredo guardado dentro da noite silenciosa e velada

Contos | 2025 - SETEMBRO - Primavera de versos: Florescer de Emoções | Gilmair Ribeiro da Silva
Publicado em 14 de Junho de 2025 ás 14h 26min

O dia estava tranquilo. Como sempre, as barracas tomavam uma das calçadas; a outra margeava o Tiro-de-Guerra, onde se reuniam ao cair da tarde para cantar o Hino Nacional. Nesse momento, bloqueavam o quarteirão. Ali vivia uma "comunidade independente", chamada de família, e normalmente eram apresentados nas resenhas pelo termo "patriota" antes do nome pessoal. Não lhes faltava nada: a iluminação era cedida pelos moradores da região, apoiadores da causa, através dos muros, e a alimentação era fornecida por um caminhão que chegava todas as manhãs, diziam que era auxílio do agronegócio e de outras padarias maiores da região. Ninguém tinha certeza disso.

Durante as manhãs e após o almoço, as pessoas que se dirigiam à escola precisavam andar pela via pública, disputando espaço com veículos. No meio do dia e à tarde, o grupo voltava a bloquear o quarteirão e, direcionados ao prédio principal do Tiro-de-Guerra, cantavam o Hino Nacional. Nutriam ódio por um professor e uma professora que saíam da escola pública e passavam ao meio quando entoavam o hino, muitas vezes vestidos de vermelho - “comunistas safados” que queriam impedir que ocupassem o poder. Em muitas ocasiões os insultavam; “Vão pra Cuba”; “Doutrinadores de adolescentes indefesos”

O certo é que no novo lar provisório, ninguém identificava o agora "Figueira" – antes Nilson Figueiredo, comerciante bem-sucedido, que há trinta anos fincara raízes na periferia da cidade. Da sua padaria, amassando o pão de cada dia, vinha o sustento da família: ele, a mulher Camila e a filha adolescente, Marcela, que estudava o ensino médio pela manhã numa escola confessional, "para preservar os valores familiares, as tradições e o respeito à pátria". No período da tarde, a menina o ajudava no comércio.

Até 2013, as questões políticas e sociais não o atraíam, sua atenção estava voltada para as atividades comerciais. Nas conversas com amigos e familiares, se identificava como politicamente neutro, já que o constrangimento tácito o impedia de se assumir conservador. Entretanto, no plano político e social, votava disfarçadamente no PSDB; era o chamado "voto envergonhado".

Essa postura hesitante persistiu até o dia em que um professor, cliente assíduo da padaria, lhe abriu os olhos: "Ao votar assim, você apenas replica o discurso da elite dominante e elege seus porta-vozes – uma apropriação inconsciente".

Naquele momento, a exemplo de seu grupo de amigos e de outros tantos cidadãos país afora, passou a se autodenominar conservador e patriota, aproximando-se de grupos de extrema-direita formados por religiosos, políticos e assistencialistas, firmando, enfim, uma identidade – a de “conservador e de direita”, agora assumida.

Seu discurso também mudou – agora defendia com desenvoltura teses como "estado mínimo" e políticas de costumes, pregava contra a descriminalização do aborto e das drogas. Percebeu que não era mais um anônimo: tornou-se assíduo frequentador de redes sociais e um formador de opinião. Essa postura, inclusive, lhe trouxe benefícios, pois sua padaria passou a ser ponto de encontro de grupos conservadores, gerando lucro considerável. Sentiu-se poderoso.

No ano de 2021, sentiu-se representado pelo governo da época, tanto que passou a fazer campanha pela continuidade da gestão, utilizando, como de costume, as redes sociais e até mesmo disponibilizando materiais de campanha em seu estabelecimento. Sua mulher, no entanto, pragmática, o contrariava: entendia que não se deve misturar negócios com política. Para ela, o ideal seria votar sem envolvimento direto com candidatos e partidos, evitando inimizades que pudessem prejudicar o comércio – o sustento e a estabilidade

 Apesar de tudo, viveu sua maior decepção no final de 2022, quando seu candidato à presidência da república perdeu as eleições. Logo, foi convencido pelo grupo e amigos que se reunia na padaria, e a exemplo de inúmeras pessoas em todo o país, resolveu radicalizar aderindo ao acampamento, foi nesse momento que a exemplo de outros tantos que começavam a ser instalados defronte aos quarteis pelo país afora, passou a morar no acampamento defronte ao Tiro-de-Guerra,  na sua cidade. “O quartel general da resistência” para impedir a posse do então presidente eleito, invocando um golpe civil-militar.

Policiais militares circulavam pelo local, ora trocando palavras com os acampados, ora compartilhando um churrasco com eles, num clima de aparente cordialidade. No entanto, havia denúncias — inclusive de professores à polícia militar e à promotoria — questionando se impedir transeuntes de usarem as calçadas, aproveitar energia elétrica de origem incerta ou até ameaçar alunos poderia configurar alguma irregularidade. Ainda assim, nenhuma providência formal, até então, havia sido tomada.

Isso lhe deu confiança. Fez profissão de fé, delegou à esposa os negócios e passou a morar temporariamente no acampamento. Ali permaneceria até que o presidente eleito fosse impedido de tomar posse e ocorresse a aguardada intervenção militar. Só então retornaria à casa, vitorioso como um Bonaparte, cumprindo sua nobre missão de salvar o país dos 'comunistas' — uma questão de honra. Valia o sacrifício de deixar a família para trás em nome da unidade familiar, da pátria e dos valores cristãos.

Dona Camila, como era conhecida no comércio e na igreja que frequentava, tinha enorme dificuldade de gestão: embaraçava-se com as finanças, não sabia se deveria cuidar primeiro da reposição dos produtos ou verificar o prazo das contas a pagar. Embora, no cotidiano, desenvolvesse bem a relação com os funcionários e a prestação de serviços aos clientes, que eram muitos, sua vida social já não existia — trabalhava das cinco da manhã às dez da noite, pouco frequentava a igreja e mantinha apenas uma relação profissional com a filha, que já se mostrava entediada.

Diante de tantas dificuldades que se avizinhavam, foi naquela sexta-feira, dia de maior movimento na padaria, que um acontecimento inesperado lhe despertou uma nova visão de mundo, mudando sua vida para sempre.

Estava atrasada para abrir a padaria e o carro insistia em não funcionar. Como sempre, o vizinho odiado, que fazia questão de exibir uma bandeira vermelha no alto da sacada — a quem nunca oferecia um “bom dia” — lia seus livros enquanto, da sacada, observava sua aflição. Surpreendentemente, ele desceu e, com gentileza, ofereceu seu carro para que Dona Camila não prejudicasse suas atividades, propondo ainda cuidar de seu veículo para pô-lo em funcionamento.

Ficou constrangida em aceitar o carro do vizinho e, como alternativa, propôs que ele a levasse até o comércio, o que foi feito com presteza. Ao retornar, seu carro já estava funcionando, e o vizinho, no lugar de sempre — lendo. Diziam que ele era tradutor, mas, para seu marido, era apenas um comunista que trabalhava para destruir a família e a fé das pessoas.

Ainda com alguma resistência, Dona Camila começou a duvidar das afirmações do marido. Não parecia possível que um homem refinado, como acabara de constatar, que utilizava palavras bonitas e ordenadas por ideias convincentes, pudesse realmente ter o intento de destruir famílias. Ficou envergonhada ao lembrar que havia sentido um arrepio no corpo quando olhou em seus olhos calmos, ouviu suas palavras e percebeu a suavidade de seu perfume, que invadia suas narinas. Aquele cheiro bom impregnara sua alma como uma tatuagem invisível, despertando todos os seus desejos adormecidos.

A filha havia combinado de dormir na casa de uma amiga. Ao chegar em casa, antes de entrar, pediu que o vizinho descesse para agradecê-lo de maneira respeitosa. Dali em diante a cronologia dos acontecimentos se perdeu: só se lembrava da suavidade do perfume em suas narinas e do momento em que, na própria cama, embarcara numa astronave e visitara mundos inimagináveis, num rompante de sonhos, canções e magia que a levaram aonde nunca havia chegado antes. Logo, dormiu pesadamente.

Acordou de madrugada, assustada, e viu que suas roupas, que antes haviam sido jogadas no chão, estavam cuidadosamente dobradas sobre uma cadeira. Veio-lhe um turbilhão de sentimentos: culpa e mágoa pelo marido radical — uma revolução explodia no peito, mais forte que a guerra santa da ideologia que até então defendera, porque agora compreendia que o gozo e a paixão não tinham fronteiras nem uniformes.

Mas aquilo não poderia continuar. Pensou em chamar o vizinho para uma conversa e dizer-lhe que “tudo foi um erro”, mas estava atrasada e seguiu direto para a padaria. Já no ambiente de trabalho, tomou uma decisão: naquela noite, depois do expediente, iria até o acampamento buscar o marido e lhe dar um ultimato: ou voltaria para o seio da família, ou ficaria lá para sempre. Depois, resolveria definitivamente a questão com o vizinho.

Para Figueira, foram muitos dias em que na solidão chorava de saudades da família, mas, conversando com amigos patriotas, sentia-se em casa. Não era uma família? – buscariam então juntos um objetivo nobre e comum: impedir a posse do presidente eleito, para que seu mito continuasse na Presidência da República, mesmo que para isso tivesse que dar auxílio, de alguma maneira, a um golpe de estado.

 Tinha de antemão, consciência das consequências que essa iniciativa poderia acarretar; porém, o medo era menor do que a crença e a fé de que a história poderia se repetir, pois a polarização supunha que as ações bem-sucedidas em 1964 poderiam ser reproduzidas – era só uma questão de tempo para que os valorosos militares colocassem ordem na casa, impedindo, mais uma vez “a expansão do comunismo”, “a destruição da família tradicional e da religião”.

A maior parte de sua irmandade não estranhou sua ausência, pois eram pessoas que compartilhavam a mesma ideologia, embora com menos disposição para a exposição pública. Tampouco os vizinhos perceberam grande mudança, afinal, tratava-se de um evangélico convicto e dono de uma padaria no subúrbio, onde também residia — um espaço híbrido de moradias e comércios, situado em uma região relativamente tranquila e bem estruturada. Embora carecesse da elegância ou da atratividade conturbada das áreas centrais e periféricas da cidade, ao longe, a bandeira nacional tremulava, imponente

Pouco frequentava sua própria residência, pois passava quase todo o tempo no acampamento. Apenas ocasionalmente voltava para casa por alguns momentos durante a semana, mas logo retornava, permanecendo ali o dia inteiro, recebendo e transmitindo informações e planejando ações.

Era durante a noite, porém, que se sentia mais vulnerável—fragilizado, sensível e solitário, precisando de apoio moral. Nesse momento, o amigo, Major Milton, militar aposentado, sempre confiante e eloquente, lhe servia de sustentação. "Chegará o tempo em que seremos absolutamente livres, poderemos expressar nossos valores e defender a família e a pátria sem intervenção ou contestação", dizia. E isso o fortalecia.

Naquela noite, estava perturbado, e o sono não vinha. O amigo, que tentava auxiliá-lo, sentou-se ao seu lado no colchão, e ficaram conversando até de madrugada. Quando o silêncio reinou e os únicos sons eram o farfalhar do vento nas árvores e o cricrilar dos grilos, decidiu descansar. Naquele dia, o amigo se deitou no colchão ao seu lado.

Num dado momento, entre conversas amigáveis, sentiu a mão do amigo lhe acariciar e, em seguida, o hálito quente roçando seu pescoço. Quis afastá-lo, chegou a sentir repulsa, mas logo percebeu que, no íntimo, estava gostando. Fechou os olhos e navegou naquela noite por águas serenas, descobrindo um mundo novo que se avizinhava. Era uma revelação inesperada, uma experiência que brotava das trevas, como a semente na terra fértil e selvagem, sem imaginar que, inconscientemente, trocava o imaculado leito matrimonial por uma paixão de alcova—um misto de confusão e descoberta, uma explosão de desejos.

Acordou bem cedo, envergonhado. Tomou café e sentou-se à porta da barraca, em frente à calçada onde, logo, passariam alunos e professores que, direta ou indiretamente, sempre os provocavam—os comunistas, "doutrinadores de adolescentes indefesos". Na verdade, estava confuso.

Questionou o amigo sobre suas preocupações e premonições, e mais uma vez foi consolado. Aquilo fora apenas um acontecimento, um instante de fragilidade e apoio. Mas não eram como "esse pessoal da esquerda", que se expunha publicamente e propositadamente para destruir a família brasileira. Continuariam ali, firmes, preservando os valores cristãos em defesa da pátria e da família. No íntimo, havia gostado da experiência e deu-se por satisfeito.

Nos dias seguintes, tudo começou a mudar. Sentia-se frustrado. Tudo dera errado: seu presidente havia perdido a eleição, e já circulavam ameaças de prisão para aqueles que permanecessem nos acampamentos. Naquela noite, sonhou que sua mulher fugira com o vizinho "comunista" intragável, deixando apenas um bilhete sobre a escrivaninha.

Correu para casa no meio da noite silenciosa e velada, levando em seu íntimo um segredo guardado pelas sombras, abraçou a filha e beijou a mulher, tomado pela convicção de que os valores cristãos estavam preservados, e que a família—base da sociedade—estava salva.

Gilmair Ribeiro da Silva – Professor da Rede Pública do Estado de São Paulo e autor dos Livros “Ausência” e “Os Muros e o Silêncio da Cidade”

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