UM REENCONTRO COMIGO (de quando voltei para a sala de aula)

Crônicas | Antologia Romeu Donatti e convidados - História de Escola | Noi Soul
Publicado em 13 de Fevereiro de 2024 ás 10h 29min

No geral, as pessoas ao meu redor nunca fizeram questão de esconder que esperavam a minha jornada da heroína, pautada na pessoa centrada, disciplinada, inteligente que idealizavam que eu fosse. Uma vez, já na adolescência, reencontrei um colega de infância e ele falou com naturalidade: “Uau. Sua voz é tão linda! Você canta? Canta uma música pra mim, por favor!”. Eu, tímida como sempre quisera me mostrar, tentei salvar-me falando que eu nunca ousaria maltratar os cristais dos seus ouvidos. Rimos muito e ele ainda insistiu que eu investisse na cantoria.

Nunca ousei cantar na frente dos outros, mas eu queria ter este talento e essa confiança, quem sabe um dia… Ainda não morri!

Depois de muitos anos virei professora de crianças e também virei mãe. Espera um pouco! Primeiro eu virei mãe e depois virei professora de crianças, esta foi a sequência correta. Parece que tem uns trinta anos, mas meu filho ainda nem completou cinco e eu mesma ainda não tenho vinte e nove anos.

E foi assim que eu conquistei meu pequeno público apaixonado. Eu sempre amei cantar com as crianças e para elas, pois tinha certeza que elas acreditavam mais no meu sentimento em cantar e expressar a canção do que nas técnicas, na qualidade e alcance vocais que, ainda hoje, suspeito não possuir.

Um dia, bem displicente, estava eu testando as possibilidades da minha voz e iniciei um agudo extraordinário e quase insuportável, que culminou num desarranjo total. Foi uma verdadeira catástrofe. O pior não foi isso exatamente. O pior foi ouvir uma voz ao longe gritando “Que porcaria é essa? Se começou termina…”. Era do vizinho do apartamento ao lado.

Eu respondi com o resto de voz e saliva que me restavam: “Desculpa, senhor! Não queria incomodá-lo…”. Não ouvi resposta de volta e pensei que chorar um pouco aliviaria o meu estresse, a minha vergonha e a nítida frustração. Estava sempre me convencendo de que cantar não era uma boa ideia, um bom investimento e algo conveniente para mim.

Refleti bastante neste dia e cheguei à conclusão de que eu exagerara, tanto que a rouquidão tomou conta da minha fala. Bem da verdade que minha voz sempre fica mais charmosa quando parece rouca, até um pouco sedutora. Eu gosto, mas quando não passa de três dias. Após isso o desespero me abate.

Já falei sobre ser professora de crianças? Pois é… Voz é meu instrumento de trabalho. E como preciso dela! Depois daquele episódio fatídico, ainda passei um tempo sem o gosto para cantar outra vez, mas não muito tempo… Meu filho, como quem entende que precisa arrancar os meus medos da criança ferida que fui um dia, convida-me a desafios cada vez mais aventurescos.

Dia desses ele me pediu, saltitante, “Mamãe, mamãe… Canta aquela música da formiguinha para mim? Canta, canta, canta!”. Eu fiquei olhando para o rostinho ansioso dele e imaginando o quanto minha voz alcançava os recônditos do seu coração, porém respondi modesta: “A mamãe não sabe cantar, filhinho… Canta pra mim para eu lembrar!”. Ele mostrou-se decepcionado e implorou mais uma vez: “Mamãe, mamãe, sua voz é tão doce. Canta pra mim uma música… Pode ser a que você souber!”, sua voz falou animadamente outra vez.

“Acho que lembrei-me da música da tal formiguinha, filho… Que tal cantarmos juntos?”. Seu sorriso explodiu na face pueril e punha-nos a cantar alegres e despretensiosos.

Quão maravilhoso foi descobrir que minha voz era doce para a alma de alguém. Nunca mais parei de cantar. Canto até hoje. Você consegue me escutar daí?

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