UM NATAL INESQUECÍVEL

Natal | 2025 - DEZEMBRO - Luzes e esperanças: Histórias e poesias para aquecer o Natal | Paula Gibbert
Publicado em 05 de Abril de 2025 ás 18h 18min

UM NATAL INESQUECÍVEL

É Natal! Sim, é Natal e cá estou eu, sozinho, para comemorar essa data tão...tão... família.

Meus pais viajaram para a Europa porque querem sentir a magia do Natal na Alemanha e ver o Papai Noel distribuindo os presentes em um trenó sendo arrastado pela neve por algumas renas (como mostram nos filmes); meu irmão mudou-se para o Recife e minha mulher me deixou há três meses. Sendo assim, estou literalmente sozinho.

Com ‘sozinho’ quero dizer que minha família não vai estar aqui comigo. Até o ano passado, tínhamos comemorado essa data sempre juntos. Porém, os planos para o meu Natal deste ano já começaram há alguns meses e aposto que vai ser muito especial.

Ofereci-me na casa paroquial da igreja que frequento para ser um dos Papais Noéis na noite de Natal. Vamos sair de caminhonete (Que pena não poder ser um trenó!) e distribuir os presentes de Natal para as crianças carentes da cidade.

A equipe da coordenação paroquial adaptou um projeto dos correios: vamos arrecadar presentes de Natal para a criançada junto aos empresários. Houve uma campanha para que as crianças escrevessem cartas para o Papai Noel pedindo que presentes queriam ganhar as quais deveriam ser entregues na secretaria da igreja. Lá, todas seriam lidas e providenciaríamos os presentes. Cada presente seria empacotado já com nome e endereço da criança que o receberia.

O trabalho foi intenso, pois recebemos muitas cartinhas. A maioria das crianças pedia brinquedos. Foram mais de 80 bonecas, 92 bolas, 16 pares de patins, 8 skates, 16 bicicletas, 128 carrinhos (alguns de controle remoto), kits com blocos de montar, quebra-cabeças com figuras dos desenhos animados, livros de literatura infantil, ursinhos de pelúcia, chocolates, entre outros.

Alguns pedidos nos surpreenderam muito.

Uma menina negra de oito anos pedia uma boneca da sua cor. Como poderia chamar de ‘filhinha’, uma boneca branca? Sua autoestima era altíssima. Disse que se achava linda e que, quando crescesse, seria presidente do Brasil.

Uma menina de dez anos pedia uma árvore de Natal e as figuras de um presépio para montar em sua casa. Queria a árvore já com todos os enfeites: bolas brilhantes de tamanhos variados, festões coloridos e um pisca-pisca com luzes coloridas, pois eram coisas que ela poderia guardar para usar novamente nos anos seguintes. Disse, na sua cartinha, que tinha visto isso em uma loja e pensava que não seria mais natal na sua casa se não tivesse um cantinho com esses enfeites.

Um menino que sofrera um acidente aos dois anos de idade e perdera uma das pernas pedia uma prótese para poder andar sozinho novamente. Sonhava em chegar andando na escola sozinho. Disse que estava ficando pesado para ser carregado pela mãe e que ela sempre se atrasava para o trabalho por ter de levá-lo para lá primeiro.

Um menino de doze anos pedia um par de chuteiras porque queria ser um jogador de futebol de campo, mas por ter de jogar descalço com os amigos no campinho do bairro, já arrancara a unha do dedão do pé por três vezes. Sendo assim, como poderia se destacar se ficava sempre um bom tempo sem jogar?

Muitas crianças pediam roupas e calçados para poderem ir bem-vestidas para a igreja na missa de Natal e os pais não tinham dinheiro para isso. Outras pediam que pudessem ter uma ceia de Natal com a mesa farta naquele ano.

Uma carta recebida foi escrita pelo pai de gêmeas cuja mãe as tinha abandonado com ele. Esse pai pedia humildemente um carrinho duplo de bebê para que pudesse levá-las à igreja aos domingos, para creche quando ia trabalhar e para onde mais precisasse.

Um menino que morava na rua mandou a carta que fez chorar a todos os que estavam presentes na hora da leitura: ele disse que sua mãe havia morrido em um acidente de trânsito quando ele tinha oito anos. Desde então, uma mulher que também morava na rua, ajudava-o a mendigar para ter como matar sua fome e sua sede. Ele pedia para ser adotado.

E a carta com o pedido mais desesperador foi o de uma menina franzina de onze anos que passava facilmente por uma de nove. Ela pedia para ir morar com o Papai Noel porque não aguentava mais ‘os carinhos do papai’ em sua casa.

Fizemos por essas crianças tudo o que estava ao nosso alcance. Os brinquedos foram muito fáceis de conseguir. O par de chuteiras, as roupas, a árvore de Natal e o presépio, o carrinho duplo de bebê e outras coisas que não eram brinquedos conseguimos com os comerciantes do bairro onde cada uma morava. A prótese conseguimos com o médico da cidade.

Entretanto, o que nos deixava de coração partido eram a menina que sofria violência sexual em casa e o menino que queria ser adotado para sair das ruas. Como resolver isso?

Fomos ao endereço da menina que era molestada pelo pai num horário em que julgávamos que ele estivesse no serviço, mas ele estava em casa. Expulsou-nos de lá aos berros dizendo que os problemas da sua família era ele mesmo quem resolvia.

Continuamos a investigação e ficamos sabendo que o pai era guarda-noturno. Sendo assim, num outro dia, fomos visitá-la de noite. Ela nos recebeu com um olhar desolador e, meio ressabiada, nos contou como tudo acontecia: a mãe tinha sofrido um avc e, desde então, o pai a forçava a ter relações com ele. A mocinha não podia sair dali porque cuidava da mãe que via tudo acontecer; tinha ficado com um lado do corpo paralisado e perdera a fala. Seu olhar era mais triste que o da filha.

Entramos em contato com o conselho tutelar e com a polícia. A mãe e a filha foram acolhidas em um abrigo. O caso está sendo tratado pela justiça, mas ficamos muito preocupados com a adolescente e com sua mãe porque, num caso desses, é bastante comum o homem ficar violento exigindo seus ‘direitos’. Ela ainda não teria o Natal dos seus sonhos, mas tinha tido coragem de dar o primeiro passo, mandando a cartinha para o Papai Noel. Seu presente era a expectativa do distanciamento definitivo e nós, da coordenação paroquial, continuaríamos acompanhando o caso de perto dando apoio moral e financeiro para as duas.

O caso do menino que queria ser adotado foi encaminhado para o abrigo da cidade. No local, ficamos sabendo que o menino já tinha estado lá por um tempo, mas não se adaptara. Dizia que sofria muito bullying e acabava voltando para as ruas novamente. Isso já acontecera por três vezes. Já tinha sido investigada sua paternidade, porém do seu pai, o garoto só sabia o primeiro nome. Não conhecia nenhum parente e, a mulher que lhe dava um pouco de atenção e comida quando ele não conseguia nenhum trocado em sua mendicância, já tinha três crianças para cuidar. Ele se sentia um fardo para ela.

A coordenação cogitou levá-lo para uma casa de abrigo na capital. Talvez lá, ele conseguisse conviver com os demais até ser adotado. Entretanto, estávamos cientes que a adoção dificilmente ocorre quando a criança tem mais de cinco anos e Carlinhos já tinha nove. Começamos a ajudar o menino bem como outros moradores de rua do local onde eles costumavam ficar com cestas básicas e roupas.

O olhar de expectativa desse menino começou a povoar os meus sonhos e, depois de duas semanas rolando na cama sem conseguir dormir direito; depois de muitas conversas com meus pais e meu irmão, com o juiz e com pessoas do orfanato, tomei uma resolução. As providências foram tomadas e, dois dias antes do Natal, o menino já estava sob a minha guarda.

Na véspera de Natal, ele foi comigo, entregar os presentes que tínhamos preparado. Foi um Natal inesquecível.

 

 

 

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