UM ESTRANHO NA PONTE

| Iziz De Andrade
Publicado em 19 de Abril de 2022 ás 23h 07min

 

Acordei assustada hoje. O coração oprimido. Sem motivos aparentes, tudo está bem em meu reino. Já revirei atrás de algo que estivesse fora de meu controle, mas...

O marido foi para o trabalho, os filhos para a escola. A casa está organizada. As contas em dias, os parentes e amigos todos bem. Não entendo.

Distraída reviro a colher dentro da xícara de café fumegante, pra lá e pra cá, brincando com os desenhos que se formam na espuma e começo a me perder em pequenas lembranças. Pedaços do sonho desta noite. Algo que vou lembrando aos poucos. A noite escura, o ar pesado, o frio, os sons de águas negras correntes... um rosto.

O rosto do homem, seu olhar profundo, suas mãos apertando meus braços, sua voz suplicante: - Não esqueça! Jura que não vai esquecer.

Meu Deus! Não esquecer o quê? Porque dói tanto? Quem é você,  rosto de meu sonho? Por que me é tão familiar?

Uma lágrima rola por meu rosto...

Pouco a pouco o sonho vai voltando, revirando meu estômago, me arrepiando... aquele arrepio de medo, de sentir algo ou alguém bem ali, do meu lado. A presença é tão marcante que tenho medo de desviar os olhos de dentro da xícara de café. Sinto a respiração em meus cabelos, o cheiro do homem do sonho.

Escuto sua voz sussurrar: - Não te esqueças! Não te esqueças!

Então fecho os olhos com força e estou dentro do sonho. Caminhando pela lateral da ponte. Está tarde. Está frio. Está chuviscando. Está escuro, apesar das luzes, mais ao longe, estarem acesas. Caminho mais depressa, apertando o blusão de encontro ao peito, como um abraço apertado para me aquecer.

Passo o segundo vão da ponte e de repente visualizo um vulto, de pé em cima da proteção lateral da ponte segurando só com uma das mãos o cabo de aço de sustentação.

Meu coração dispara, eu paro, travada, sem saber o que fazer.

A pessoa está quase a se jogar. Ouço seus soluços... Olho para todos os lados, estamos sozinhos, mais ninguém. Meus pés pesam como chumbo, coloco a mão na boca para não gritar e não assustar a pessoa que está ali a poucos metros de mim.

Com muito esforço recomeço a andar, passo a passo, lentamente, sem fazer barulho. Ainda sem saber como proceder.

O homem está tão absorto em sua dor, que não me vê aproximar e nem escuta quando chamo baixinho pra não o assustar.

 - Moço! Moço, por favor... falo quase sussurrando, minhas mãos tremem e minha voz sai rouca. Levo o braço e o toco devagar.

Ele vira o rosto e me olha tão  confuso que nem me responde. Soluça... continua ali em cima da grade. Eu volto a falar: - Moço! Por favor desce daí... você  vai cair, se machucar... por favor!

Ele volta a olhar para as águas profundas e ouço no meio de seu soluçar: - Moça, vai se embora daqui. A moça não tem de ver isso.

E com a voz quase sumindo completa: - Por favor... por favor...

Eu, já chorando, respondo:

- Não vou embora, enquanto você não descer daí.  Não vou embora enquanto você não me disser o porquê. Só me diga o porquê e prometo que vou embora, mas desça daí.

Ele fica em silêncio, pelo que me pareceu uma eternidade. Eu só ouvia seu respirar ofegante. O meu mais ainda, e o barulho das águas.

Quando enfim, depois de muita luta interior, ele se moveu lentamente,  segurou o cabo de aço com as duas mãos, abaixou o corpo, sentou na mureta, passou as pernas para o meu lado e pulou sobre a ponte de frente para mim.

Era bem mais alto que eu. Não era velho, apesar da pouca luz dava pra ver seu rosto sofrido, os olhos tinham uma dor insuportável. Estava vestido de roupas escuras, simples, de trabalhador e um casaco pesado de frio.

Sem mais nem menos ele me agarrou pelos braços e me sacudiu... Eu achei que ia realmente morrer ali.

Então ele começou a falar:

- Moça você tem que me entender e também me fazer um favor.

Olhava nos meus olhos e continuava a me segurar e sacudir... suas mãos fortes já estavam começando a me machucar e eu apavorada disse: - O quê você quer que eu faça? Me fale e eu vou fazer, é só me dizer...

Ainda sem me soltar ele falou:

- Diga a elas que eu as amo. Que as amo mais que tudo nesse mundo. Mas, tenho de ir. Não fui bom o suficiente. Não fui bom o suficiente.

- Diga a elas que tudo saiu dos eixos, que tudo foi se acumulando, que tentei resolver de todas as formas que eu podia, sem deixar elas perceberem quão difícil estava. Mas tudo que eu fazia só piorava a situação.

- Não tenho mais como pagar as dívidas, não tenho mais como alimentá-las, não tenho mais como voltar.

- E hoje, pra finalizar, eles me mandaram embora da fábrica. Eu implorei moça, eu ajoelhei, mas eles não tiveram compaixão.

- Disseram que não podiam fazer nada. Que estava difícil pra todo mundo. E me mandaram embora. Você me entende? Me mandaram embora.

Ele falava, rápido, quase gritando, como se isso me fizesse entender.

Não me dava tempo para falar, nem mesmo raciocinar. E continuava...

- Moça você tem de me jurar que vai falar com elas. É minha esposa e minha filhinha, minha filhinha linda.

- Diz a elas que tudo vai ficar bem. É só eu ir. As pessoas vão ajudar. Sempre ajudam se elas estiverem só.  Moça jura pra mim. Jura.

- Elas estão em casa. É aquela casinha, no fim do bairro das pedras, a única sem pintura, de portão baixinho. Você vai achar...

- Você está me entendendo? Diz pra mim? Vamos diga...

E me sacudia mais ainda... eu estava apavorada, o medo me paralisava, até que por fim, saiu um tímido sim.

- Sim.

E ele continuou:

- Não te esqueça, diz que eu as amo, diz... não te esqueças.

De repente, ele largou meus braços, pegou a minha mão e colocou algo ali que ele tirou do bolso. Fechou minha mão e a beijou. E ainda segurando com força, chorando ele novamente falou:  Ela vai entender quando você entregar isso a ela. Não esqueça, jura, não te esqueça.

E eu jurei, olhando em seus olhos, chorando como ele eu jurei.

Em um segundo ele largou minhas mãos, subiu na mureta e pulou...

Fiquei ali, paralisada. Nem um grito saiu de minha garganta. Eu só olhava para o nada.

Minhas pernas não existiam mais. Eu só tinha frio, escuridão e aquela coisa em minha mão. Abri bem de vagar... era uma pedrinha branca, pequenina.

Do nada, ainda chorando, abri os olhos. Estava segurando a xícara com tanta força que o café derramou em minhas mãos e em cima da mesa. Já estava frio, gelado.

Sacudi a cabeça várias vezes para lembrar que estava em casa, segura, que tudo fora só um sonho.

Muito real, mais só um sonho.

Levantei. Minhas pernas ainda tremiam quando limpei a bagunça que eu tinha feito. Fui pro quarto, peguei a toalha, que estava em cima da cômoda, pra tomar um banho, como que pra tirar toda aquela coisa ruim de mim.

Meu mundo rodou, o quarto escureceu, quando puxei a toalha,  uma pedrinha branca caiu rolando no chão.

 

 

 

 

 

Comentários

Fascinante seu conto! Para mim a pedrinha branca é um enigma a desvendar!

ENOQUE GABRIEL | 24/04/2022 ás 15:20 Responder Comentários
'

Olá! Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo. Ao utilizar este site, você concorda com o uso de cookies.