Um encontro pra lá de estranho

Contos | Isolti Cossetin
Publicado em 22 de Agosto de 2024 ás 09h 31min

               Um Encontro Para Lá de Estranho

Era uma noite como nenhuma outra. A lua, cheia e resplandecente, estava envolta em um halo verde, enquanto estrelas piscavam em tons vermelhos e azuis. As criaturas do folclore brasileiro, em seus respectivos lares escondidos nas matas e rios, receberam um convite peculiar, entregue por uma brisa que sussurrava palavras enigmáticas: “Reunião das Lendas. Compareça se tiver coragem.”

Curioso e desconfiado, o Saci Pererê foi o primeiro a chegar. Pulando em sua perna única, ele encontrou uma clareira iluminada por luzes que flutuavam como vaga-lumes mágicos. “Que arapuca é essa?”, ele resmungou enquanto girava seu cachimbo. Logo, o som de galhos quebrando e passos pesados anunciou a chegada do Curupira, com seu cabelo em chamas e os pés virados para trás. “Veio aprontar, Saci?”, perguntou ele, com um sorriso meio debochado.

Antes que o Saci pudesse responder, um murmúrio suave, como o cântico de uma sereia, trouxe a Iara, deslizando silenciosa por entre as árvores. Sua presença deixou o ar úmido e perfumado, e os outros a observaram com uma mistura de fascínio e cautela. “Parece que todos nós fomos atraídos para essa armadilha,” disse ela, com uma voz melódica, mas cheia de desconfiança.

De repente, um forte relincho ecoou pelo ar, e a Mula sem Cabeça surgiu galopando pela clareira. Suas chamas brilhavam intensamente, e o chão tremia sob seus cascos. Todos se afastaram, cautelosos, mas o Saci não pôde deixar de soltar uma risada travessa. “Ei, quem sabe essa reunião é uma festa de São João disfarçada?”

Mas a situação logo se tornou séria quando uma névoa densa começou a envolver o grupo, distorcendo a visão e os sentidos. No meio da bruma, uma figura serpenteante surgiu: o Boitatá, com seus olhos brilhantes como brasas, deslizando silencioso como um espectro. “Há algo errado aqui”, disse ele, com sua voz sibilante. “Fomos reunidos, mas para quê?”

Antes que qualquer um pudesse responder, um estrondo fez a terra tremer e uma voz ecoou por entre as árvores: “Vocês se esqueceram de mim!” Do chão, uma criatura feita de sombras e raízes se ergueu. Era o Anhangá, o espírito guardião da natureza, que há muito estava adormecido. Ele, com olhos que pareciam espelhos negros, olhou para as lendas reunidas.

“O mundo mudou”, disse Anhangá com um tom grave. “Os humanos estão esquecendo de suas raízes, de suas histórias. Reunir vocês é a última tentativa de manter viva a memória do que fomos e ainda somos. Mas antes, quero testar se ainda são dignos de ser chamados de lendas.”

Nesse momento, a clareira se transformou em um labirinto de ilusões. As árvores viraram muralhas vivas, riachos se tornaram armadilhas, e o céu parecia se dobrar sobre si mesmo. Cada criatura precisou usar suas habilidades para enfrentar desafios próprios: o Saci teve que atravessar um campo minado de armadilhas invisíveis; o Curupira desvendou um enigma sobre os segredos da floresta; a Iara teve que resistir à tentação de cair em seu próprio reflexo ilusório; e a Mula sem Cabeça precisou controlar suas chamas para não destruir a si mesma.

Com a ajuda um do outro, e após muitas brigas e risos, conseguiram superar o labirinto e voltar à clareira. Lá, Anhangá os aguardava. “Vocês ainda têm o espírito das lendas. Mas lembrem-se: não basta existir. É preciso ser contado, lembrado. Voltem às matas, rios e trilhas e mantenham viva a magia da nossa terra.”

Com essas palavras Anhangá voltou às profundezas da terra para mais um sono secular, pois percebeu que a magia do folclore ainda está viva, assim como cada ser que dela faz parte.

 

 

 

 

 

 

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