O seu rosto era familiar a todos, sua presença era mais constante do que a própria instituição. Raquel era uma senhora baixa, ligeiramente acima do peso, com seus óculos arredondados e sempre cercada de crianças. No final do ano anterior completara seus 54 anos, bem vividos e dedicados quase que totalmente a educação de crianças.
Na ocasião do aniversário não poderia ser diferente. Uma comemoração não surpresa. Afinal, é difícil surpreender alguém com bom poder de observação. Balões foram colocados, bolos, salgados, refrigerantes e enfeites alegravam a sala dos professores.
— Desejamos os parabéns para a nossa aniversariante. — Disse a diretora com ar cerimonial e ao mesmo tempo alegre.
— Sou grata a todos! É uma honra e uma grande alegria fazer parte desta equipe. Dessa creche, sei que agora devo chamar Centro de Educação Infantil (CEI). Mas, para mim sempre será creche. A primeira de nossa região, e que muitas crianças por aqui passaram. Algumas até já trabalham conosco, outras vimos crescer em nossa comunidade. Obrigado novamente, e, penso que este será o último aniversário como professora trabalhando com vocês. No ano que vem eu me aposento e veremos o que o futuro nos reserva.
Encerrou a sua fala e, logo amenidades e fotos tomaram o lugar de suas palavras e de suas sensações. A aposentadoria é algo que muitos sonham durante a carreira de professor. Nesses sonhos se esquece de anotar o quanto o tempo passa, as vivências transformam e toda a experiência fica marcada na lembrança. Mas, logo será substituída por um novo profissional. Esse é o ciclo, não sei se faz sentido, só sei que é assim que acontece.
Os dias transcorreram normalmente, chegaram as férias. Um pouco de descanso, passeios, afazeres diversos, visitas e as festividades de final de ano.
O ano letivo começou como de costume, poucas alterações. Novas portarias, reuniões pedagógicas, planejamentos e uma ou outra reforma em algum setor do Centro de Educação Infantil. Entre as pequenas mudanças, uma chamava a atenção da professora Raquel. O fato dela estar como professora auxiliar e não a titular da sala. Era estranho não ser a titular, mas as duas professoras se conheciam muito bem e isso não era um problema, era apenas estranho. Déborah a professora titular era uma jovem alta, com expressões distantes e pouco sorrisos, mesmo sorrindo um pouco mais na presença das crianças. Era expressões opostas na mesma sala, demonstração de afetos bem distintas convivendo com cordialidade e dedicação.
Tal ajuste se deu pelo simples fato de Raquel ter solicitado a aposentadoria. Todavia, esta só seria oficializada com decretos e assinaturas inúmeros. Como é comum em setor público. Por isso, ela esteva em campo ao lado de quem a substituiria, afim de não impactar muito para as crianças, muitas delas já acostumadas com a sua presença.
O evento de despedida ocorrera em uma tarde do mês de abril. Fora uma tarde aparentemente comum, longe das festivas dos aniversários. Pequenas despedidas ocorreram ao longo do dia, breves avisos as crianças que haviam preparado algumas lembranças. Para todos os funcionários um dia qualquer, menos para Raquel que tanto aguardara a sua aposentadoria. Porém, sentia agora que algo lhe faltava. Não sabia se essa sensação era passageira, mas sabia que não teria volta. Foi assim, a tarde toda, e no final do expediente fora para sala dos professores como de costume.
Na sala dos professores, o ambiente estava como de costume, armários, papéis, café e muita conversa. Nesse momento lembrou de alguns filmes que mostram a pessoa ao aposentar recebendo um relógio. Talvez, para marcar o tempo que ainda resta, ou talvez para dizer que é hora de começar a viver. Não faz diferença, o fato é que é um presente muito estranho, é algo frio e de toda forma sem sentido.
— Nós gostaríamos de agradecer e entregar-lhe uma lembrança. — Disse a diretora.
Nessa hora o coração da professora Raquel disparou. Tudo que veio em sua mente fora a imagem de um relógio. Relógio esse que nunca anda para trás, só para frente.
Ela se aproximou e recebeu com certo nervosismo o presente. Todos em couro gritaram.
— Abra, abra!
Ela abril com certo receio, e, se emocionou ao ver que se tratava de um porta retrato com dois lados. De um lado a imagem da inauguração da creche com a presença dos funcionários que iniciariam as atividades naquela unidade escolar. E, do outro a fato do seu último aniversário, comemorado ali com os seus colegas.
Ela abril, se emocionou, e sorridente agradeceu.
— Muito obrigado! Que susto vocês me deram. Achei que fosse um relógio.
Publicado em
Flor, Dolores (Org.) Antologia de Escritores Contemporâneos: contos volume 06 Valter Figueira e convidados. Sinop – MT: Ações Literárias Editora, 2021