Se canções existissem

Contos | 2023/10 Antologia Corações Partidos | Karen Souza
Publicado em 20 de Janeiro de 2024 ás 12h 32min

Uma mera nota musical jamais poderia expressar o que senti ao vê-la pela primeira vez. Nem mesmo todas as mais belas partituras do universo se assemelhariam ao compasso de meu coração, à melodia de meu amor. E eu que imaginava que entendia tudo de música, descobri aos poucos que não tinha conhecimento sobre o mais importante em relação a ela: as emoções mais verídicas advindas deste tipo de arte.

   Minha vida caminhava de forma constante e sem grandes novidades, não imaginava que seu rumo poderia mudar de maneira tão inesperada. Muitos diriam que foi obra do destino, mas prefiro acreditar que foi apenas imiscuição direta de minha avó. Isso porque, no auge de minha adolescência, ela insistiu em impor uma nova atividade em meu cotidiano, que era, até então, comum e pacato. Isso foi em uma manhã trivial, exceto pela visita surpresa da mãe de meu falecido pai, que já chegou com uma ideia fixa:

   — Ulisses, você já pensou em voltar a tocar violão?

   Como respondi que não, ela insistiu, com sua teimosia habitual:

   — Acho que você deveria voltar a fazer as aulas, lembra de como você ficava animado com aquele seu violãozinho? E tinha muito talento, também.

   — Vó, eu tinha oito anos. E eu nem gosto mais tanto assim desse tipo de coisa.

   — Como não gosta? Se já gostou muito, continua gostando, ué. O amor pela música não vai embora com os anos.

   Desconversei, mas, no fundo, sabia que ela tinha razão. As insistências continuaram, até que passei a considerar a ideia. Porque eu realmente sentia uma satisfação especial em tocar violão, embora tivesse abandonado essa prática por causa dos contratempos da vida. Tanto pensei no assunto, que o que antes era uma simples possibilidade passou a ser um desejo descomunal. E, com meu violão antigo nas mãos e a expectativa na alma, revivi memórias que foram silenciadas pelo tempo.

   Iniciamos então as aulas de música, eu e meu violão. Optei pelas manhãs de sábado, pensando que era uma decisão óbvia que não interferiria em minha vida. Não imaginava que a simples escolha por aquele dia me levaria a conhecer a Melody. Não foi de uma forma especial ou peculiar, mas sim com a trivialidade que marcava minha vida: um “bom dia”, um sorriso, uma pergunta, uma apresentação. Me contou que estava aprendendo a tocar violino. Eu, mais impressionado do que gostaria de aparentar, fiz algum comentário que a fez sorrir e me olhar de uma maneira singular, que parecia querer dizer algo, mas nunca compreendi o que era.

   Foram dez minutos de conversa, murmúrios e sorrisos ora furtivos, ora evidentes. Minha aula começava um pouco mais cedo e terminava um tanto antes do que a dela, de forma que, algumas semanas depois, com a amizade que vinha se moldando e com o consentimento de minha mãe, passei a aguardar o horário de sua aula chegar ao fim. Embora fosse pouco tempo de espera, eu não o enxergava assim, ansiando que o ponteiro dos minutos do relógio da sala de espera chegasse logo no 12, o que parecia levar uma, ou melhor, mil eternidades para acontecer.

   Quando o momento tão desejado chegava, eu me levantava empolgado e a acompanhava até o ponto em que nossos caminhos deixavam de ser no mesmo sentido, mas eu não sabia exatamente onde ela morava. Por vezes, com o case de meu violão nas costas, me oferecia para carregar o de seu violino nas mãos, ao que ela ocasionalmente aceitava. Conversávamos sobre assuntos variados, mas a sensação que se apossava de mim era sempre a mesma: a vontade de prolongar aqueles nossos breves momentos, até que eles representassem o próprio conceito do infinito.

   Mas isso não ocorreu. Talvez pelo meu apego aos acontecimentos costumeiros, talvez por simples falta de iniciativa. O fato é que, entre sábados e acordes, eu pensava cada vez mais naquela garota, apesar de não conhecê-la muito bem. Eu a comparava com a própria música: bela e misteriosa, uma partitura ainda não decifrada. Uma canção que eu almejava cantar, mas não conhecia a letra. Ela me fornecia uma leveza inexplicável. Leveza essa que eu adoraria sentir pelo resto de minha vida.

   Em um certo sábado, que eu sabia que era seu aniversário, decidi que cantaria uma música a ela, algo que expressasse o que eu sentia e que declarasse o que eu há tanto tempo queria que ela soubesse. Mas assim que cheguei à escola de música, senti um misto de tristeza, frustração e apreensão, porque ela não compareceu à aula daquele dia. Me perguntei se ela estaria doente, mas logo deixei o assunto de lado, chegando à conclusão de que a Melody faltou devido a algum compromisso importante. Afinal, era seu aniversário. Apenas não encontrei um motivo para ela não ter me avisado.

   Aguardei pelo sábado seguinte, agora não mais pretendendo cantar a ela, pois a minha coragem partiu junto com seu aniversário. Comprei uma miniatura de violino para presenteá-la e fiz um cartão genérico, lhe desejando felicidades e muitos anos de vida, sem declarar meu amor, esperando poder entregar a ela no próximo sábado.

   A semana passou mais lentamente do que o habitual. Quanto mais eu tinha pressa, mais o relógio me castigava, deslizando o ponteiro de uma forma vagarosa, como que de propósito. “Tudo passa, menos o tempo”, lembro de ter pensado. Mas é claro que esse meu raciocínio estava incorreto, então o sábado chegou.

   Quem não chegou foi a Melody, na escola de música. Foi nesse momento que me convenci de que ela não estava bem, certamente tinha adoecido, e muito. Minha preocupação se intensificou na semana seguinte, quando ela esteve ausente mais uma vez. Perguntei para sua professora se ela sabia o motivo, ao que a moça respondeu que a Melody foi desmatriculada do local. A notícia foi recebida por mim como se descobre o óbito de alguém amado. Cogitei ir à casa dela, mas não sabia seu endereço, conhecia o caminho até o ponto no qual nos separávamos. Confesso que tentei descobrir onde ela morava, perguntando a várias pessoas, vagando pelas ruas, sem saber ao certo aonde ir.

   Não a vi mais. E a história que imaginei que seria uma bela melodia foi interrompida por uma impiedosa pausa, dando fim à partitura de nosso nunca iniciado romance. Muitas vezes, me surpreendi observando a miniatura de violino que pertenceria a ela, ouvindo a música que planejei cantar em seu aniversário. Eu considerava aquela menina a própria personificação das canções. Quando deixamos de nos encontrar, foi como se eu tivesse me perdido de mim mesmo, como se as músicas não tivessem mais o mesmo impacto. Gravei nossas memórias no pentagrama de meu coração e desenhei as notas da saudade. Eu e meu violão.

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