Primeiros jardins

Contos | 2025 - JANEIRO - Novos horizontes. Poesias de recomeços | Manoel R. Leite
Publicado em 13 de Janeiro de 2025 ás 10h 20min

Gabriel sempre foi um homem de silêncios comedidos e reflexões profundas. Aos 48 anos, encontrava-se diante de uma encruzilhada: reavaliar a própria vida ou continuar seguindo o roteiro que outros haviam escrito para ele. Trabalhava há mais de duas décadas em uma empresa de logística, ocupando um cargo administrativo que lhe pagava as contas, mas não abastecia a alma. Vivia numa casa de bairro tranquilo, com um quintal pequeno cuja terra endurecida mal nutria duas roseiras. Porém, assim como aquela terra seca, Gabriel sentia o coração sedento por algo que ele ainda não havia conseguido nomear.  

Ele começara a sentir, há alguns meses, um incômodo crescente que tomava conta de sua rotina. A sensação de estar preso em um ciclo repetitivo o fazia questionar escolhas, prazos e prioridades. Às vezes, ao sair de casa pela manhã, olhava para as roseiras quase mirradas e sentia uma pontada de tristeza: elas eram um reflexo, pensava, de como sua vida fora negligenciada. Assim como aquelas plantas, ele precisava de água, luz e cuidado.  

Certa vez, ao encontrar um velho colega de escola, recebeu o conselho que, à época, soou despretensioso:

_ Por que não tenta cuidar mais do seu jardim? Talvez você goste.

Gabriel deu de ombros, mas a ideia grudou em seus pensamentos. Dias depois, numa tarde de domingo, foi ao centro da cidade visitar a feira de plantas e comprou um saquinho de sementes de girassol. Não sabia muito bem por que havia escolhido girassóis — talvez pela imagem de alegria que as pétalas amarelas evocavam.  

Chegando em casa, retirou o pequeno pacote de sementes da sacola e ficou observando-as na palma da mão. Eram mínimas, quase despercebidas; ainda assim, tinham o potencial de se tornarem flores grandiosas. Foi nesse instante que Gabriel sentiu um calafrio: uma nova fase da vida se desenhava em sua frente. Não só por causa das sementes, mas pelo significado que começava a atribuir a elas. Algo dentro de si soprava que, assim como aquelas sementes, ele também podia germinar em outro lugar, sob novas condições, e transformar-se.  

Na manhã seguinte, levantou-se mais cedo do que de costume. Vestiu uma velha calça jeans, calçou botas gastas e saiu ao quintal. A neblina ainda pairava no ar, mas a promessa de um sol radiante já se insinuava no horizonte. Pegou uma enxada encostada em um canto, ferramenta que nem lembrava que tinha, e começou a revirar a terra. Esta estava dura e seca, exigindo força, e após alguns minutos os braços dele já protestavam em cansaço. Mesmo assim, continuou até sentir que havia preparado o solo o suficiente para receber as sementes.  

Quando finalmente terminou de preparar a terra, sentiu uma leve dor nas costas e o suor escorria pela testa. Mesmo assim, havia uma sensação de dever cumprido como não experimentava havia tempos.

_ Vou plantar essas sementes e cuidar delas. E isso não é apenas sobre as plantas - sussurrou para si mesmo, quase como se estivesse fazendo uma promessa solene.  

No decorrer das semanas, Gabriel criou o hábito de acordar sempre meia hora antes do habitual para cuidar da terra e regar as sementes. Enquanto regava o futuro canteiro de girassóis, mantinha uma conversa consigo mesmo, como quem se reconstrói através de pequenas declarações. Pensava sobre o peso dos últimos anos, sobre as vezes em que quis largar tudo e recomeçar em outro lugar, mas a conveniência e o medo o mantiveram estagnado.  

Em uma dessas manhãs, enquanto verificava a umidade da terra, sua filha adolescente, Isabela, apareceu na porta da cozinha.

_ Pai, o que está fazendo acordado tão cedo? - Ela o observava com um olhar entre a curiosidade e o carinho. - Ele então sorriu.  

_ Estou plantando girassóis - respondeu, segurando na mão dela para que sentisse a textura do solo. - E aprendendo que, às vezes, a gente precisa revirar a nossa própria terra para ver o que brota de verdade.  

Isabela riu baixinho, sem entender completamente, mas sentindo a sinceridade nas palavras do pai. Aquela cena foi um dos primeiros lampejos de que, de fato, algo novo surgia ali: o homem ensimesmado e acomodado se tornava, gradativamente, alguém que cuidava e cultivava.  

As primeiras mudas de girassol começaram a surgir cerca de duas semanas depois. Gabriel contemplou cada broto como se fosse um milagre pessoal. No trabalho, onde nada havia mudado oficialmente, ele passou a encarar as tarefas com um outro ânimo. Talvez não fosse a atividade em si, mas a mudança interna em curso. Passou a conversar com os colegas com mais paciência, a organizar relatórios com mais atenção, e até a participar de projetos que antes considerava entediantes.  

Em uma dessas reuniões na empresa, reencontrou um antigo parceiro de departamento, Cláudio, que comentou:  

_ Você está diferente, Gabriel. Tem alguma coisa no seu olhar, uma tranquilidade, sei lá… _ Cláudio inclinou a cabeça em curiosidade.  

_ Deve ser esse projeto novo no meu quintal - Gabriel sorriu, lembrando-se dos girassóis.  

_ Projeto no quintal? — Cláudio ergueu as sobrancelhas. - Parece interessante.  

— É, estou aprendendo a jardinar. Tem me feito bem.  

Não entrou em detalhes, pois sentia que a experiência era muito pessoal. Ainda assim, aquela troca curta de falas era sinal de que sua transformação começava a reverberar também entre as pessoas ao seu redor.  

Com o passar dos meses, os girassóis floresceram, imponentes e vistosos. A cada novo botão aberto, Gabriel sentia como se ele próprio se abrisse mais para a vida. Tornou-se quase um ritual diário observar as pétalas ao amanhecer, antes de sair para o trabalho, e ao entardecer, quando retornava. E foi nesse período, diante de toda a beleza que cultivara, que decidiu se matricular em um curso de horticultura orgânica nos fins de semana.  

O curso era oferecido por uma associação de bairro, e reunia pessoas de diferentes idades e experiências. Lá, Gabriel conheceu Marília, uma senhora de pouco mais de sessenta anos, ex-professora que havia decidido passar a velhice cultivando uma horta comunitária. Ela se tornou uma espécie de mentora e amiga.  

_ Eu também senti esse chamado, sabe? - ela dizia, certa tarde, enquanto ambos plantavam mudas de alface em bandejas. - Passei a vida inteira dando aulas para crianças e jovens, mas chegou um momento em que precisei dar uma aula a mim mesma: a de descobrir quem eu era fora das salas de aula.  

Gabriel escutava, fascinado. Cada palavra dela encaixava-se como um conselho ou como um lembrete de que recomeçar é, antes de tudo, um ato de coragem. Marília contava sobre como deixara o medo de lado e se juntara a outros voluntários para cuidar de uma horta urbana. Falava do prazer de ver o desenvolvimento das plantas, de se sentir parte de uma rede de pessoas que trocavam mudas, ideias e, principalmente, respeito pela terra.  

E foi durante aquele curso que Gabriel teve a clareza que buscava sem saber: ele não precisava largar o emprego para viver melhor, mas podia, aos poucos, reconfigurar o modo como encarava o trabalho e a rotina. Podia equilibrar responsabilidades com atividades que nutrissem o espírito. Podia, enfim, tornar-se o “jardineiro de seus próximos dias”, aprendendo a lidar com dificuldades como quem cuida de uma planta que precisa de mais ou menos luz, de mais ou menos água, de uma poda adequada.  

Certo sábado, ao voltar do curso, Gabriel encontrou Isabela sentada nos degraus da porta da cozinha, distraída com o celular. Ao percebê-lo chegar, ela guardou o aparelho e perguntou se ele tinha tempo para conversar. Gabriel estranhou o tom, mas sentou-se ao lado dela, disposto a ouvir.  

_ Pai, eu estava pensando… Você sempre trabalhou tanto. E agora parece estar mais feliz. É só por causa do jardim?  

Gabriel respirou fundo, ajeitando a bolsa com ferramentas no colo.

_ Acho que não é só por causa do jardim em si, filha. Mas por tudo que estou aprendendo enquanto planto, enquanto cuido. Quando a gente se dedica a algo que faz sentido, isso reverbera em outras áreas da vida.  

Ela o encarou com um misto de orgulho e curiosidade.

_ Engraçado como, na escola, eu sempre aprendi sobre germinação, fotossíntese… Mas você está me mostrando que tem algo maior nesse processo de cuidar da terra.  

_ Tem, sim - ele concordou, dando um pequeno sorriso. - É como se a gente estivesse aprendendo a cuidar também do próprio coração.  

Nas semanas seguintes, a vida seguiu com uma harmonia renovada. Gabriel se sentia mais conectado à filha, ao trabalho e a si mesmo. Até mesmo os pequenos contratempos como um problema no carro ou um relatório urgente deixaram de ter o mesmo peso esmagador de antes. Ele agora via cada obstáculo como parte de um grande ciclo, uma oportunidade de reavaliar, ajustar e prosseguir.  

Em uma tarde enquanto terminava de preparar uma nova jardineira para temperos, recebeu uma ligação de sua mãe, que morava em outra cidade. Ela soava preocupada:

_ Seu tio Roberto teve um problema de saúde e vai precisar de repouso. Você pode nos ajudar?

Gabriel ficou em silêncio por alguns instantes, pensando em como conciliar o trabalho, a filha e essa nova demanda. Porém, ao mesmo tempo, sentiu que esse era mais um chamado para exercitar o cuidado, não só com plantas, mas com a família também.  

_ Claro, mãe - respondeu, sereno e sincero. - Vou ver como posso reorganizar tudo e passo aí no sábado de manhã.  

E assim, se pôs a traçar planos para dar suporte ao tio. Passou algumas noites pesquisando sobre quais adaptações seriam necessárias na casa dele, e conversou com a filha, que prontamente ofereceu ajuda:

_ Eu posso fazer companhia pra ele enquanto você estiver no trabalho, pai.

A preocupação de Gabriel foi suavizada pela postura participativa de Isabela, que demonstrava ter aprendido algo com o pai: também começava a nutrir o hábito de cuidar.  

Enquanto organizava uma mala simples para passar alguns dias ao lado do tio, Gabriel fez uma última vistoria no seu pequeno jardim. Observou as flores, os temperos e as roseiras que agora, finalmente, exibiam pétalas saudáveis e cores vibrantes. Passou a mão pela terra úmida, grato pela transformação que vinha ocorrendo dentro e fora de si. Não era apenas sobre plantar sementes, mas sobre permitir-se viver novas realidades.  

No caminho para a casa do tio, Gabriel refletiu sobre tudo o que acontecera nos últimos meses. Lembrou do dia em que comprara as sementes de girassol, meio sem saber o que fazer com elas. Reviu mentalmente as manhãs em que acordava antes do sol surgir, ainda cansado mas determinado a cuidar do seu pequeno espaço verde. E percebeu que, a cada nova ação, construía um pedaço de si mesmo que estava adormecido.  

Ao estacionar o carro em frente à velha casa onde tantas vezes passou as férias de infância,  abriu um sorriso. A sensação de pertença, antes esquecida, retornou junto ao ar fresco do interior. Sua mãe o aguardava no portão, acenando com alegria contida, e ele sentiu o coração ser tomado por uma suave confiança. As palavras de Marília, sua mentora no curso de horticultura, ecoaram em sua mente: “Recomeçar é um ato de coragem”.  

Naquele instante, compreendeu que seu papel de jardineiro dos próximos dias se estendia além do quintal, além da cidade em que morava, até os vínculos familiares e as relações que, por muitas vezes, negligenciara. Entrou na casa do tio levando na mala não só roupas, mas também mudas de ervas e a vontade genuína de auxiliar na recuperação dele.  

_ Ainda bem que você veio, meu filho - saudou a mãe.  

_ Cuidarei do que for preciso. E acho que vai ser bom pra todos nós.  

Ele olhou para o quintal do tio, espaçoso mas sem flores, e sentiu o impulso de preparar a terra ali também. Quem sabe plantar alguns girassóis, ou até mesmo cultivar uma pequena horta, algo que trouxesse esperança e vida. E, no fundo, percebeu que essa era a essência do recomeço: saber plantar no terreno que a vida nos oferece, cuidando, persistindo e florescendo em cada nova estação.  

Enquanto descarregava as malas, sorriu ao pensar que, dali para frente, cada passo seria um convite a cuidar das plantas, das pessoas e, principalmente, de si mesmo. Era o jardineiro dos próprios dias, e a cada semente lançada à terra, reafirmava a certeza de que sempre é tempo de germinar um futuro melhor.  

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