Preservando a ordem pública e a paz social

Contos | 2025 - DEZEMBRO - Luzes e esperanças: Histórias e poesias para aquecer o Natal | Gilmair Ribeiro da Silva
Publicado em 12 de Julho de 2025 ás 15h 37min

  Foi noutro tempo — desses que não voltam mais —, na contagem do “era uma vez”, numa ocasião em que a sociedade se encontrava ideologicamente dividida em duas partes equivalentes e sem rumo, permitindo que a violência atingisse patamares alarmantes e assustadores, como jamais registrados. Foi nesse cenário que os fatos a serem narrados aconteceram.

A população, por motivos óbvios, havia perdido a confiança nos governantes executivos e legisladores. As instituições, já frágeis, atravessavam momentos de enfraquecimento — entre elas, a segurança pública. Isso levou as pessoas, sob a justificativa de que a Polícia Militar era violenta com a população em vez de combater o crime, e de que a Polícia Civil não investigava por contar com apenas quarenta por cento de seu quadro funcional, o qual não era devidamente qualificado, a começarem a se armar para fazer justiça com as próprias mãos.

Diante da balbúrdia burocrática, não há até hoje registros históricos sobre o ocorrido, restando apenas as marcas da oralidade que alimentam a tese da cultura popular. Diz-se que cada investigador recebia diariamente, na delegacia da cidade, cerca de 60 ou 70 boletins de ocorrência para investigar crimes, limitando-se a carimbar em muitos deles “as investigações prosseguem”, investigando de fato apenas os casos mais graves e que causavam repercussão.

Foi nesse contexto — numa sexta-feira de dezembro, ocasião em que o comércio permanecia aberto até as 22 horas, aumentando o movimento das ruas e a ocupação dos espaços públicos por transeuntes, muitos deles em gozo de férias — que um boletim de ocorrência, em especial, chamou a atenção do investigador-chefe Beto Fonseca, responsável pela triagem, acompanhado da investigadora Maribel — a Bel — e do carcereiro Siqueira.- Opa! Esse aqui, de repente dá um caso esclarecido, melhorando ai a nossa produção! Disse......

— Como assim? — contestou Bel. — É só um relato da vítima, sem qualquer testemunha dos fatos ou evidência!

— Vá por mim, irmãzinha. É só fazer um corre nos dois locais onde a vítima estacionou o carro e buscar, nas câmeras de residências e estabelecimentos, registros da ação criminosa. Se conseguirmos isso, o autor será facilmente identificado pelas imagens.

A investigadora e o carcereiro se ocuparam, então, de ler o histórico do boletim de ocorrência com atenção redobrada:

“O solicitante narra que é comerciante e, para contato com seus clientes externos, utiliza seu carro — um Hyundai HB20S, prata, ano 2020. No dia anterior, ao realizar duas visitas, estacionou o veículo na rua José Alfredo Ramos, no Parque da Boemia, nas proximidades de um estádio. Ao retornar, duas horas mais tarde, constatou que a porta lateral direita estava totalmente amassada, assim como a parte frontal, além da quebra do vidro dianteiro. O prejuízo é considerável, sobretudo porque o veículo não é assegurado.

Embora não tenha identificado nenhuma testemunha, para auxiliar nas investigações informa que, antes dos fatos, havia estacionado por cerca de meia hora na rua Primeiro de Maio, nas imediações de um hotelzinho — segundo consta, frequentado por profissionais do sexo. Ao retornar, viu uma moça de aproximadamente 25 anos, loura, de boa aparência, cabelos longos e lisos, usando óculos grandes, que rodeava seu carro e parecia fazer anotações. Como não percebeu nada anormal naquele momento, tomou o volante novamente e seguiu para o segundo local, onde, mais tarde, constataria os danos”.

Utilizando o veículo oficial, dirigiram-se primeiro ao último local em que a vítima havia estacionado, mas lá não havia câmeras em residências ou estabelecimentos que permitissem identificar a autoria. Contudo, no primeiro local, as câmeras registraram a presença de uma moça com características idênticas às descritas no boletim de ocorrência, que, ao lado de outras duas mulheres, parecia realmente fazer algum tipo de anotação.

Ato contínuo, a identificação não foi difícil — especialmente graças à descrição precisa fornecida. Dany, agora formalmente identificada, era a única mulher com as características mencionadas. Como havia urgência na resolução do caso, os policiais civis abriram mão da intimação formal e recorreram a uma estratégia rotineira: a intimidação. "Se pegasse, muito bem. Caso contrário, fariam a intimação."

Bel aproximou-se, seguida de Siqueira, que a protegia a uma distância de dois metros. Disse que precisava qualificá-la, mas que, para isso, ela deveria acompanhá-los até a delegacia. Nesses casos, a maioria das pessoas, para evitar confusão ou ser alvo da exploração por parte de caminhantes da via pública, acaba acompanhando os agentes sem maiores protestos.

Na delegacia, a garota sem qualquer desembaraço, esclareceu ao escrivão Benjamim Ribeiro, ser profissional do sexo, que utilizava o citado hotel para encontro com clientes, negando categoricamente qualquer participação no dano narrado no boletim de ocorrência, inclusive, pelo fato de não conhecer a vítima, e não ter, motivo justo ou aparente iniciativas dessa natureza, acrescentando que quando não estava em atividade fazia anotações em seu diário pessoal. Sua declaração formal foi considerada coerente pelo experiente escrivão, inclusive por colaborar na identificação das duas garotas que a acompanhavam na ocasião e que poderiam confirmar sua versão.

Ocorre que, após assinar a declaração que seria anexada ao boletim de ocorrência, enquanto aguardava o relatório ao término das investigações, o escrivão Benjamin Ribeiro — safo como era —, simpatizando com a moça, disse:

— Toda contenda ocorre entre três versões: a da vítima, a do suposto autor e uma terceira — que é a verdade. Você já prestou declarações e assinou, e isso é o que vale. Mas, em particular, para uma alma sensível e curiosa, um contador de histórias do futuro... o que realmente aconteceu naquele dia? Conte — isso ficará apenas entre nós dois.

Dany olhou para o chão, desviou o olhar para a janela, pensou por um momento e, após o suspense, tirou os óculos e olhou firme nos olhos do escrivão:

— O senhor deseja apenas alimentar a curiosidade ou quer mesmo me prejudicar?

— Dou minha palavra. Essa versão informal não irá aos autos.

— Pois bem... terá sua história bonita.

Com uma leveza e um desprendimento até então não demonstrados, ela passou a discorrer sobre os fatos com surpreendente desenvoltura:

“Esse homem havia contratado meus serviços em três oportunidades. Ele na verdade era muito carinhoso e generoso e, por temer pela sua reputação e zelar pela família, pagava um valor maior para que eu redobrasse o cuidado com a discrição e proteção. Até que, um belo dia, esse mesmo senhor, após usufruir das bondades a ele oferecidas, saiu sem pagar — Você acredita? o cara de pau disse que por ter gastado muito dinheiro comigo merecia a gratuidade como um brinde! Ora, ninguém o havia obrigado a procurar profissionais!”

“Fiquei com muita raiva. Chorei. Esse é meu trabalho, moço... mas naquela ocasião, não havia muito o que fazer”.

Continuou sob os olhares atentos do escrivão....

“Surpreendentemente, ele, um mês depois, manteve novo contato comigo, e dessa vez todo carinhoso, pedindo mil desculpas, propôs um novo encontro entre nós, prometendo pagar em dobrado a oportunidade anterior. Topei no ato; entretanto, como forma de vingança, troquei favor com um amigo, que pelo que sei, já puxou cadeia – mas não digo o nome dele, por questão de sigilo profissional. Foi ele que tramou tudo”:

Benjamin estava cada vez mais curioso – isso daria uma novela policial, pensou, enquanto a moça continuava a narrativa, fazendo lembrar um narrador machadiano....

“No dia combinado, disse ao ciente que o hotel estava cheio devido uma convenção de trabalhadores, mas que ele não precisava se preocupar, pois eu tinha reservado um local próprio, a dois quilómetros de onde estávamos, onde teríamos a privacidade desejada; e, melhor: ele não pagaria nada pela estada. Levou-me a direção indicada em seu próprio carro; ocorre que quando já estávamos ambos sem roupa a porta foi invadida por três homens -  meu amigo e dois comparsas dele,  todos exibindo estiletes ameaçadores. Logo, meu amigo o enquadrou”:

 - Você quer morrer aqui mesmo, ou pagar a dívida da moça?

- Pago agora, por favor, tenho filho pra criar...

- Beleza, mas será do nosso jeito, vai ver como é bom trepar e não pagar!  – em seguida sinalizou com a cabeça e os outros dois rapazes, aproveitando o medo, a fragilidade apresentada, bem como a facilidade sugerida pelo “esperto” ali sem roupa, cada qual ao seu tempo, alimentaram seus instintos perversos, como condutores infratores avançando estrada afora, em flagrante desrespeito às normas, transgredindo com abuso o perímetro do anel viário.

Dany, por fim, completou: “É por isso que ele está agora pagando de bravinho!” – está se sentindo uma flor! E riu sarcástica e com crueldade, enquanto ajeitava os óculos.

Dany, em seguida, foi dispensada sob orientação de que poderia ser notificada, oportunamente para prestar novas declarações.

Na condição de vítima, o senhor Leovigildo foi então intimado e, na oportunidade, foi cientificado de que o crime de dano é de ação penal privada, ou seja, depende da iniciativa da vítima por meio de queixa-crime. Após prestar declarações, ele deveria tomar as providências necessárias para que a suposta autora, após a juntada das provas e a conclusão do feito, fosse processada e respondesse pelo delito.

Mas, antes de colher as declarações dele, o escrivão teve o cuidado de relatar o que ouvira da moça — suposta autora — de maneira informal. Era uma versão que exigiria novas diligências e formalização, caso houvesse representação para dar continuidade à instauração da ação penal.

Ao ouvir o relato, Leovigildo deu um pulo da cadeira e, exaltado, desmentiu com ênfase a versão que ouvira:
— Sou pai de família! Tenho responsabilidades de cidadão de bem e filhos para cuidar...

E, desta feita, totalmente constrangido, abriu mão da continuidade das investigações, justificando:
— Olha, doutor... Gente desse mundo sujo gosta de manchar a honra das pessoas de bem. Imagine isso ficar registrado e espalhado por aí a todo momento... Deixa pra lá. Vou arcar com os prejuízos. Pode arquivar.

O competente relatório de investigações registrou mais um caso esclarecido, constante nas plataformas da Secretaria de Segurança Pública — sempre zelosa na preservação da ordem pública para promoção da paz social.

 

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