Há quem procure o amor nas alturas

mas ele mora na esquina do cotidiano

no cheiro do café que acorda lembranças

na toalha antiga que cobre o almoço de domingo

na conversa que se repete e ainda faz sentido

nos gestos distraídos que o tempo conserva

em cada espera que se disfarça de costume

paixão também é olhar pela janela sem pressa

ou ouvir a chuva falando com o telhado

é cuidar de plantas que nunca florescem

só pelo prazer de ver o verde insistir

é rir sem motivo, e por isso mesmo certo

há ternura no ato de arrumar o silêncio

de colocar açúcar no copo de alguém

escolher a cadeira onde o sol encosta

tudo o que se faz com presença é chama

o simples ganha rosto de eternidade

olhar de gratidão ilumina o instante

como se fosse confissão sem palavra

há paixão no modo de viver devagar

de respeitar o tempo das coisas pequenas

guardar bilhetes que o vento esqueceu

gostar de um rosto apenas por ser humano

vida é feita de paixões assim: delicadas

que não precisam de palco nem testemunha

arder em segredo é forma de existir inteiro

o mundo se sustenta nesses incêndios breves

que chamamos de momentos comuns.