Pelo retrovisor

Contos | Manoel R. Leite
Publicado em 03 de Março de 2022 ás 23h 23min

— Olho o mundo pelo retrovisor, não sei se gosto. Na verdade, não sei se faz diferença gostar ou não. Apenas dirijo para frente com os olhos votados para trás. Esta tem sido a minha vida e a minha direção.

— Do que está falando Daniel? – perguntou o meu colega de viagem. Roberto um funcionário novo atento ao trajeto e ao mesmo tempo espantado com a minha fala.

— Apenas penso que olhar o que já se fez é o melhor percurso para os novos caminhos. Estamos chegando.

Naquele instante, chegara na entrada da cidade, e nos direcionamos ao hotel que estava reservado para os próximos três dias de trabalho. Talvez, tenha sido bom parar um pouco aquele assunto, o cansaço da viagem quando ainda não é o suficiente para nos dá sono, nos torna mais reflexivos, e por que não mais filosóficos.

Chegamos ao City Hotel, acredito que cada cidade tem um hotel com esse nome. Deve ser uma lei nacional ter em cada cidade um hotel com esse nome, da mesma fora que deve ser obrigatório em cada cidade um Bar dos Amigos, ou talvez ainda mais do que um. Contudo, isso não importa, era tarde, e o dia seguinte teríamos um dia cheio. Enquanto nos registrávamos perguntei se o Roberto iria jantar. Prontamente afirmou que não, ele iria pedir algum lanche e ficaria no quarto, estudando os produtos e possíveis informações dos clientes. Ele era novo no ramo de representações de produtos. Já eu, bem, possuía alguma caminhada, e essas situações não produzia ansiedade e nem me tirava o sono, muito menos o apetite.

Me acomodei no quaro, tomei um bom banho e me encaminhei ao restaurante do hotel par jantar. Pedi uma cerveja antes da refeição, enquanto apreciava aquele sabor amargo e gelado me pus a observar as pessoas ao meu redor. Era interessante perceber agitações, tédio, ânimo e desânimo ao meu redor.

Enquanto estava ali um casal me chamou a atenção. Eles eram jovens e alegres embora aparentemente um pouco atrapalhados. A esposa gesticulava bastante, dividindo sua atenção entre o jantar, o marido e o filho pequeno que deveria ter pouco menos de um ano de vida. O esposo embora atencioso, parecia com “bateria fraca”, lento em seus movimentos, quase como se não estivesse ali. Mas, distantemente cordial, ora olhando a televisão, e apenas olhando já que o seu era inaudível, ora interagindo com a família e a refeição.

Ao chegar o meu pedido, deixei um pouco o casal de lado. Respondera algumas mensagens no celular, pois se tratara de mensagens de família. E, sei que apesar de terem acostumado com o meu trabalho, sempre estão preocupadas quando fico longe.

Quando terminei a refeição o casal que me distraia, não estava mais presente. Nesse instante, lembrei-me do retrovisor e resgatei minhas lembranças. E, talvez pelas mensagens recebidas recordei o início de meu casamento. Lembrando o quanto eu também era distante, e acho, na verdade sei que por isso busquei esse trabalho. Afinal, agora fico distante realmente, e, não apenas em pensamento. Isso não me incomodava, era apena um fato, que a muito eu aceitara como modo de vida. Mas, como tudo tem o seu preço, e, a distância da família também. Contudo, certamente isso não era algo que eu gostava de pensar, se não meus rumos seriam outros. E, como estava ficando tarde resolvi me recolher.

Na manhã seguinte encontro o Roberto no refeitório. Ele acessa e todo elétrico acena para mim.

— Aqui! Sente-se aqui! – apontando para uma cadeira a sua frente.

Me servi e direcionei-me ao lugar indicado.

— Conseguiu descansar? – perguntei de maneira cordial.

Ele afirmou que sim, embora estivesse muito ansioso para iniciar as atividades. Acreditara, que estudando sobre os produtos e os clientes ficaria mais tranquilo, só que isso não aconteceu. Quanto mais estudava, mais curiosidade e dúvidas surgiam. Falei para ele que isso era normal, encerramos o café da manhã e fomos percorrer os primeiros clientes da cidade.

Os dias que se seguiram foram normais, fizemos as rotas habituais, acrescentamos alguns novos locais. E, trabalhamos como de costume, eu cordialmente distante, ele agitado e empolgado com o novo trabalho. Parecia uma criança criada em apartamento quando chega em uma fazenda, se encanta com tanto espaço e tanta natureza que se não ir em todos os lugares parecem que nunca mais os veria.

Quando estavam voltando para casa ele agradeceu.

— Muito obrigado! Realmente, obrigado pelas dicas, acho que todas elas serão muito úteis no meu trabalho. E, uma especial para a vida.

— De nada. É minha função, afinal, perder clientes é perder dinheiro e ninguém quer isso.

— Mas, não está curioso em saber qual a dica eu levarei para a vida. – disse ele esperando pela minha reação.

— Sim, fale qual foi a dica de ouro. Fale para que eu possa cobrar uma boa rodada de cerveja depois. – falei em tolo leve e sinceramente pouco curioso.

— O do retrovisor! Essa foi a principal dica e acho que a mais valiosa da viagem.

Fiquei surpreso, pois não havíamos comentado mais sobre o assunto. Não dei ênfase, apenas seguimos o caminho e não tocamos mais naquele assunto.

 

Publicado em

Flor, Dolores (Org.) Antologia de Escritores Contemporâneos:  contos volume 02 Bernadete Crecêncio Laurindo e convidados. Sinop – MT: Ações Literárias Editora, 2021

 

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