Outras paisagens

Contos | Manoel R. Leite
Publicado em 03 de Março de 2022 ás 23h 24min

Percorro meus olhos, e, chego a ter dificuldades para reconhecer o que está a minha frente. Cada detalhe diante de mim, mostra as transmutações existentes. Sei que é aqui, o meu coração afirmar de maneira teimosa, com uma insistência ruminante. Meus pensamentos afirmam: — É aqui, tenho certeza, realmente é aqui!

Nesse instante para o carro cautelosamente, desço e a minha família surpresa pergunta:

— O que aconteceu? Porque parou?

— Não foi nada. Está tudo bem! – é o que eu respondo, como se não quisesse ou não pudesse parar o diálogo interno que acelerava, e, eu precisasse do meu silêncio externo para focar no turbilhão de conversas dentro de mim.

Aquele lugar tão familiar em outrora, me trazia sensações de inquietude, nostalgia e surpresa.

Quando as pessoas percorrem muitos caminhos. Os caminhos percorridos fazem parte dela. E, por quais razões eu seria diferente. Aquele lugar já vivi, morei e tive anos preciosos de minha existência. Hoje não é mais como eu era: a casa não existe mais, as estradas mudaram, a vegetação não é mais a mesma. Apenas alguns pontos confirmam a minha certeza. A mangueira ao longe, o morro que se destaca na planície, e o céu azul que parece ser único, mesmo sendo o mesmo céu de outros lugares. Ali projetei sonhos e continuei minha jornada. Nada de mais, nada de menos.

Aquele lugar apenas me faz recordar de quem eu fui, assim fico a pensar que eu sou. Nada de errado, nenhuma mágoa avassaladora, nenhum remorso de minhas escolhas. Apenas a comparação de alguém que é com alguém que já foi. Seria isso o percurso natural de uma existência? Ser e deixar de ser em um fluxo continuo de tempo e espaço. Não sou mais quem fui, e provavelmente sei que nuca serei o mesmo. Mas nesse momento o que mais de hipnotiza não é a paisagem diante de mim. E, sim, o espelho reluzente e imaginário de meu próprio eu, mostrando uma pessoa esquecida. Como pode um espelho refletir o passado e atordoar o presente. Fico mais alguns instantes que para mim pareceu horas, e sei que para a família no carro também.

Contudo, minha família é compreensiva e paciente. Certamente bem mais do que eu mesmo. Mas tudo tem limite, especialmente quando não se esclarece, quando não se justifica. E, nesse instante eu ouço.

— Irá demorar muito? As crianças querem continuar a viagem!

— Sim, tudo bem. Já estou indo!

Me despeço fazendo um breve aceno e uma modéstia reverência para o meu eu que deixo para trás. Ainda a tempo para eu perceber um sorriso, um aceno e um adeus nos seus gestos.

Embarco discretamente no carro, assumo o volante e procuro acalmar meus pensamentos. Nesse instante ouço a minha esposa perguntar.

_ O que foi?

_ Nada querida. Apenas achei que conhecesse esse lugar. Mas, penso estar enganado. Só achei o lugar interessante. Disse para ela, não porque teria algo a esconder. Apenas pelo fato de não saber o que sentia ao ver aquele lugar, aquela paisagem e especialmente ao ver um eu que não existe mais.

 

Publicado em

Flor, Dolores (Org.) Antologia de Escritores Contemporâneos:  contos volume 02 Bernadete Crecêncio Laurindo e convidados. Sinop – MT: Ações Literárias Editora, 2021

 

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