O Terraço e o Abismo: Reflexão literária sobre Davi, Bate-Seba e a Anatomia do Poder
Crônicas | Carlos Roberto RibeiroPublicado em 05 de Junho de 2025 ás 13h 57min
Há narrativas que não são apenas histórias, mas espelhos — superfícies polidas onde, ao espreitarmos os gestos de outrem, encontramos o esboço de nossa própria humanidade, com suas fissuras, sombras e angústias. A cena de Davi e Bate-Seba é uma dessas narrativas: não apenas um evento bíblico, mas um paradigma trágico, um retrato da mais antiga e persistente aliança: aquela entre poder, desejo e silêncio.
Na primavera — época consagrada à guerra — Davi não parte. Permanece. Este detalhe, à primeira vista contingente, é o prenúncio da anomalia. O rei que deveria estar no campo de batalha encontra-se no alto de seu palácio, não empunhando a espada, mas exercendo um outro tipo de potência: o olhar. Este é o primeiro movimento da tragédia: o olhar do soberano, erguido acima da cidade, transforma a paisagem em domínio e os corpos em possibilidade.
No terraço, Davi contempla Bate-Seba: uma mulher que se banha, exposta à própria nudez, talvez na inocência de quem não imagina ser observada, talvez na naturalidade de quem não pode — ou não quer — ocultar-se do mundo. Não sabemos o que ela pensa, sente ou deseja, pois a narrativa a descreve, mas não lhe concede voz. Sua identidade surge filtrada: “filha de Eliã e mulher de Urias”. Como tantas mulheres na história da literatura e da vida, sua existência é referida pela mediação dos homens a quem está ligada, mas não pela enunciação de si mesma.
Este silêncio de Bate-Seba não é um esquecimento da narrativa, mas uma estrutura. O texto constrói-se sobre uma assimetria radical: de um lado, a vontade do rei, que deseja, ordena, possui; de outro, a mulher silenciada, deslocada do espaço doméstico para o espaço político, sem nunca expressar sua vontade. Eis aqui a gramática do poder: não apenas quem fala e quem cala, mas quem transforma o outro em objeto da própria ação.
Davi manda trazê-la. E se deita com ela. Não há sedução, não há resistência: apenas a brutal sucessão de verbos que atestam a eficácia da soberania. O que poderia ter sido um encontro de corpos torna-se um ato de apropriação, um gesto de quem confunde o direito de governar com o direito de possuir. O desejo, neste episódio, não é um impulso vital, mas um instrumento político.
O ventre de Bate-Seba, que se engravida, converte-se em prova irrefutável do acontecimento. A gravidez, ao mesmo tempo que confirma a potência do ato, ameaça o status e a reputação do rei. Davi, então, engendra uma nova trama, desta vez mais ardilosa, mais letal. Urias — o marido fiel, o estrangeiro integrado, o homem de honra — é chamado, manipulado, embriagado e, por fim, assassinado, mas não com as mãos do rei: com a lógica fria da estratégia militar. A carta que o condena à morte é levada pelo próprio condenado, como se a narrativa quisesse ironizar a cegueira da fidelidade.
Eis aqui uma das mais perturbadoras revelações desta narrativa: a capacidade que o poder possui de transformar a honra em fraqueza, a lealdade em obstáculo, o amor em armadilha. Urias não morre apenas pela astúcia de Davi, mas pela coerência ética que não lhe permite, mesmo embriagado, abandonar os companheiros de guerra para gozar dos confortos da casa. Sua virtude o condena.
Quando a morte cumpre o seu curso, Davi completa o ciclo: consola a viúva, a acolhe, faz dela sua esposa e confere ao filho a legitimidade que o adultério ameaçava negar. Tudo parece resolvido. O poder, uma vez mais, ocultou sua própria violência sob o manto da institucionalidade. Mas a narrativa encerra-se com um adendo que escapa ao cálculo humano: “Mas o que Davi fez desagradou ao Senhor.”
Aqui, a literatura bíblica atinge sua dimensão mais filosófica: a consciência de que nem todo ato, mesmo se eficaz, é justo; que nem toda vontade, mesmo se coroada pelo sucesso, é legítima. Existe, inscrita no tecido do mundo, uma instância que transcende o pragmatismo político: um juízo que não se submete à força nem ao silêncio, mas que persiste, como uma ferida secreta, mesmo quando tudo parece consumado.
O episódio de Davi e Bate-Seba é, assim, uma reflexão sobre a natureza ambígua do poder: sua capacidade de construir e destruir, de seduzir e oprimir, de silenciar e de ser silenciado. Mas é também um convite à reflexão sobre o lugar da alteridade: o que acontece quando o outro — o corpo do outro, a voz do outro, a existência do outro — é reduzido a instrumento do nosso desejo ou obstáculo da nossa vontade?
Se há uma lição nesta narrativa, ela não está na moral superficial que condena o adultério ou o assassinato, mas na mais profunda constatação de que o verdadeiro poder não é aquele que conquista, mas aquele que respeita o limite. Davi transgrediu não apenas a lei, mas a ética do limite: confundiu a amplitude do seu reinado com a infinitude de seu desejo.
E nós, leitores, ao revisitarmos essa cena, somos convidados a perguntar: quantas vezes, em nossa história pessoal e coletiva, também transformamos o outro em espelho do nosso querer? Quantas vezes, protegidos pela altura do nosso “terraço”, esquecemos que todo olhar que invade também fere, e que todo silêncio imposto carrega consigo o espectro da injustiça?
O episódio bíblico não é apenas a crônica de um rei, mas a anatomia do humano: somos todos, em alguma medida, Davi, Bate-Seba e Urias. Somos desejo e silêncio; poder e vulnerabilidade; ação e consequência. E, talvez, como nos lembra o texto, também sejamos, sempre, convocados a ouvir a voz que, além de todas as justificativas e estratégias, sussurra: “isso… desagradou ao Senhor.”