O Tempo Achou

Contos | Rose Correia
Publicado em 07 de Abril de 2025 ás 11h 59min

O Tempo Achou

 

O tempo achou.

Achou nas trilhas esquecidas o eco das argolas, o medo abafado nas madrugadas e os passos apressados de quem um dia correu.

Achou o silêncio entre montes e montanhas de um lugar do interior, onde a lenda ainda sussurra com o vento.

 

Reza a lenda que, se ele te visse, você não poderia sorrir. Nem mostrar as unhas.

 

Dizem que, certa vez, um viajante desavisado riu alto ao ver um cavalo sem cabeça cruzando o vale. Seus dentes brilharam sob a lua. Nunca mais foi visto.

Outro, curioso, apontou para a criatura com o dedo sujo de terra, a unha à mostra — contam que o som das argolas o seguiu até o último grito.

Desde então, ninguém ousa desafiar a regra. O silêncio e o recato viraram proteção.

 

Diz-se que ali vivia uma criatura diferente de tudo. Era toda adornada em argolaria fina, com sela de primeira qualidade e os melhores pelegos. Fazia suas cavalgadas sempre à noite, depois da meia-noite. Subia e descia morros, cruzava montanhas, cavalgava livremente pelos vales. Seu trotar era acompanhado de um som inconfundível: o belém-blém das argolas, que enfeitavam seu peito robusto e se estendiam pelo lombo, finalizando numa trança presa em seu rabo.

 

Desfilava com orgulho. Sentia-se o dono do pedaço.

 

Certa feita, três moços voltavam de um matinê, alta madrugada. Caminhavam em silêncio pelas trilhas quando ouviram, ao longe, o som metálico das argolas. Se entreolharam, mas não disseram nada. Serraram a boca, enfiaram as mãos na terra úmida e ficaram imóveis. Esperaram.

 

Quando sentiram que era seguro, se olharam novamente e saíram correndo, desviando pelos caminhos apertados até chegarem em casa.

 

Naquela noite, nenhum deles dormiu.

O tilintar das argolas ainda ecoava dentro deles, vibrando no peito como se algo antigo tivesse os atravessado.

Não era só medo — era o peso de um segredo partilhado, de uma presença que não se explica, só se respeita.

Ali, no silêncio de seus quartos escuros, os três entenderam: haviam sido poupados.

 

Nunca deixaram de frequentar os matinês. Sabiam o segredo: a criatura não oferecia perigo se agissem com respeito e silêncio.

Eles foram os únicos que não temeram o grande e terrível Cavalo Sem Cabeça.

 

E o tempo achou.

Achou os gestos, os sussurros, o som das argolas.

Achou — e guardou.

 

Hoje, quem caminha por lá ainda escuta o som ao longe.

Mas se souber ouvir a terra e respeitar o silêncio,

o Cavalo Sem Cabeça apenas passa,

como o tempo: deixando histórias e levando o medo.

 

 

 

 

Conto. Folclórico. Rose Correia.

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