O Tempo Achou
O tempo achou.
Achou nas trilhas esquecidas o eco das argolas, o medo abafado nas madrugadas e os passos apressados de quem um dia correu.
Achou o silêncio entre montes e montanhas de um lugar do interior, onde a lenda ainda sussurra com o vento.
Reza a lenda que, se ele te visse, você não poderia sorrir. Nem mostrar as unhas.
Dizem que, certa vez, um viajante desavisado riu alto ao ver um cavalo sem cabeça cruzando o vale. Seus dentes brilharam sob a lua. Nunca mais foi visto.
Outro, curioso, apontou para a criatura com o dedo sujo de terra, a unha à mostra — contam que o som das argolas o seguiu até o último grito.
Desde então, ninguém ousa desafiar a regra. O silêncio e o recato viraram proteção.
Diz-se que ali vivia uma criatura diferente de tudo. Era toda adornada em argolaria fina, com sela de primeira qualidade e os melhores pelegos. Fazia suas cavalgadas sempre à noite, depois da meia-noite. Subia e descia morros, cruzava montanhas, cavalgava livremente pelos vales. Seu trotar era acompanhado de um som inconfundível: o belém-blém das argolas, que enfeitavam seu peito robusto e se estendiam pelo lombo, finalizando numa trança presa em seu rabo.
Desfilava com orgulho. Sentia-se o dono do pedaço.
Certa feita, três moços voltavam de um matinê, alta madrugada. Caminhavam em silêncio pelas trilhas quando ouviram, ao longe, o som metálico das argolas. Se entreolharam, mas não disseram nada. Serraram a boca, enfiaram as mãos na terra úmida e ficaram imóveis. Esperaram.
Quando sentiram que era seguro, se olharam novamente e saíram correndo, desviando pelos caminhos apertados até chegarem em casa.
Naquela noite, nenhum deles dormiu.
O tilintar das argolas ainda ecoava dentro deles, vibrando no peito como se algo antigo tivesse os atravessado.
Não era só medo — era o peso de um segredo partilhado, de uma presença que não se explica, só se respeita.
Ali, no silêncio de seus quartos escuros, os três entenderam: haviam sido poupados.
Nunca deixaram de frequentar os matinês. Sabiam o segredo: a criatura não oferecia perigo se agissem com respeito e silêncio.
Eles foram os únicos que não temeram o grande e terrível Cavalo Sem Cabeça.
E o tempo achou.
Achou os gestos, os sussurros, o som das argolas.
Achou — e guardou.
Hoje, quem caminha por lá ainda escuta o som ao longe.
Mas se souber ouvir a terra e respeitar o silêncio,
o Cavalo Sem Cabeça apenas passa,
como o tempo: deixando histórias e levando o medo.
Conto. Folclórico. Rose Correia.