O PRIMO DO DESEMBARGADOR

Contos | Valcastilho
Publicado em 28 de Março de 2024 ás 11h 42min

Mais uma manhã escaldante em Cuiabá, o mensageiro do tribunal subiu saltitante as escadas que dá acesso aos gabinetes dos trinta desembargadores “gordos” de boa vida, que somente os cofres públicos são capazes de conceder para os que chegam a acrópoles do judiciário. Não é para menos, chegar ao cargo desembargador é chegar ao ápice da profissão jurídica em seu estado, muitos almejam, porém poucos chegam. A mais do que isso, apenas alcançando as cadeiras do Superior Tribunal de Justiça ou a Corte Constitucional, o Supremo, onde tudo, como diz a própria denominação, é “SU PRE MO”.

            Em suas mãos uma linda caixa de veludo vermelho. Em cima da caixa, um envelope branco com a indicação: “aos cuidados do Desembargador Diógenes Papuda”.

            Por certo, mais um mimo enviado por algum ingênuo e incauto advogado, encantado pelo português “escorreito”, terno impecável e religiosidade católica irretocável que torna Doutor Diógenes insuspeito de qualquer ato de corrupção.

            As catorze horas e trinta minutos, exatamente, após quinze minutos da chegada do Desembargador, o mensageiro bateu na porta do gabinete, informando que havia um presente para o Desembargador:

            _ Presente para o Doutor Diógenes!

            _ Sim, sim, ele está atendendo um advogado, assim que ele sair eu entrego. – disse o assessor de confiança do desembargador ao mensageiro, na expectativa que ele deixasse a caixa e pudesse retornar a redigir mais um dos intermináveis votos de relatoria do dr. Diógenes, na presidência da Segunda Turma de Direito Privado do Tribunal.

            _ Não senhor, recebi cem “pila” para entregar esse presente em mãos, vou aguardar e cumprir a incumbência que me pagaram para fazer.

            _ Então, tudo bem! - disse o assessor dando de ombro e voltando para a sua mesa.

            Assessor de confiança do desembargador, Murilo Alves, é um analista jurídico do Tribunal de Justiça concursado há cinco anos, sendo que nos últimos três anos trabalha com exclusividade para o dr. Diógenes, com quem se dá muito bem, gozando da plena confiança do desembargador já que ele, há muito tempo, sequer faz a revisão do trabalho do assessor, somente assina, com as assinaturas sendo digitais agora, nem isso faz, pois a maioria das vezes quando informa que os votos e outros despachos estão em seu e-mail para revisão, o bondoso desembargar apenas se limita a dizer: “assina meu filho, você tem o meu certificado digital e, por certo, você sabe o que faz”.

            Mas a regra tem exceção, algumas vezes ele entrega ao assessor uma lista de quatro ou cinco processos que ele quer que seja anotado em sua agenda e na agenda do assessor, para que este não esqueça a seguinte observação na frente do número de autuação: “tratamento especial”! 

            Essas ações especiais são relatadas diretamente por ele. Qual seria o critério para que a relatoria seja feita diretamente pelo desembargador? Somente ele sabe.  

            Sentado com a caixa de veludo no colo, o mensageiro permaneceu impávido, esperando o desembargador abrir a porta e se despedir do advogado, era seu primo Marinho, dono de uma poderosa banca de advogados na capital mato-grossense que atraí clientes do Estado todo, sobretudo, os endinheirados do agronegócio.

            Mal Doutor Marinho saiu da sala do desembargador, o mensageiro pulou no átrio da sala:

            _ Presente Doutor, me pediram para lhe entregar em mãos!

            _ Pensa que não sei que recebeu suborno para me entregar em mãos? - disse sorrindo o desembargador, no mesmo tempo que autorizava a entrada do servidor para lhe entregar em mãos o presente.

            _ Receber um presente numa caixa de veludo vermelho em plena segunda-feira, não é para qualquer um! - disse o desembargador entre risos de deboche, certo de que era mais um presente de algum puxa saco que mais tarde o visitaria pendido um favor, enquanto abria o envelope para saber de quem recebia o mimo.

Pegou o cartão que acompanhava o presente, virou de um lado, virou do outro, e não tinha o remetente, somente uma frase: “Presente 01”, e uma dedicatória: “para um jurista inesquecível”.

            Mantendo ainda o sorriso de quem está acostumado a receber os mais variados tipos de agrados e mimos, soltou o laço que prendia a tampa da caixa, cortou a fita e abriu. Um horrendo grito ecoou na sala. O mensageiro, coitado, passou pelo assessor como um raio, enquanto este adentrava a sala acompanhado dos colegas que também se assustaram. Ao entrarem na sala, todos viram o Desembargador em estado catatônico, com a boca branca, imóvel, como se tivesse visto um fantasma.

            Na caixa aberta em cima da mesa, deitado sobre o algodão, um dedo indicador humano, roxo, com unhas preta, pelo aspecto deveria pertencer a um homem. Na tampa da caixa, do lado interno, mais um bilhete com a orientação para que ligasse a televisão.

            O assessor mostrou o bilhete para o desembargador, que permanecia imóvel, em seguida correu até a televisão na sala de reuniões, ligou o aparelho. No ato percebeu que todos os canais locais estavam transmitindo da rodovia estadual Emanoel Pinheiro, no km 42, ou seja, no mirante do Portão do Inferno, rodovia que leva a bela Chapada dos Guimarães.

            Na legenda da matéria, estava escrito: “encontrado o corpo do Promotor de Justiça Armando Silveira, depois que a polícia recebeu uma ligação anônima no número 190”. Aumentou o volume da televisão e o jornalista dizia que a princípio o policial que recebeu a denúncia pensou em se tratar de um trote, mas que tinha mudado de opinião quando passou a ligar no celular da vítima e ele não atendia. Preocupado, ligou para a esposa do promotor que disse que o marido tinha ido a São Paulo, num simpósio, e que era de costume não entrar em contato nem com a própria família, se não fosse extremamente importante. Então, a família não tinha mantido contato com o promotor desde a última quinta-feira, quando embarcou para São Paulo.

            Enquanto o jornalista narrava os fatos, ao fundo se via o corpo do promotor sendo inçado do penhasco, amarrado numa prancha do corpo de bombeiros, puxado por um helicóptero. Naquela altura dos acontecimentos, a sala do desembargador estava repleta de pessoas; do policial militar que fazia a guarda do Palácio da Justiça à senhorinha que fazia o café. Com certeza, àquele tapete persas e àquelas imagens de santos barrocos adquiridos por anos a fio em leilões oficiais, e outros nem tanto, nunca tinham sentido o pisar e o olhar de tanta gente economicamente pobre, proletários. 

            Enquanto alguns permaneciam maravilhados com a decoração do gabinete, o desembargador continuava catatônico, sentado em sua confortável cadeira, não tirava os olhos sobre aquele dedo morto envolto em algodão sobre a mesa. De repente, voltando ao seu normal, o policial militar retomou a cor e mandou que todos saírem, permanecendo no local apenas o desembargador, o policial e o assessor de confiança. 

            Em seguida, se dirigiu ao Desembargador:

            _ Senhor, preciso chamar a polícia civil, eles precisam saber o que está acontecendo aqui.

            Ligou um monte de vezes na Delegacia de Polícia, mas ninguém atendeu. Não haviam dúvidas que todos estavam no Portão do Inferno, afinal de contas, o “presunto da vez” era diferenciado. Não é todo dia que se tira de um penhasco o corpo de um renomado promotor de justiça estadual.

            Encaminhado o corpo do promotor para o Instituto Médico Legal, o legista não encontrou ferimentos corto-contusa, perfurante, perfuro-contusa, perfuro-incisa, apenas escoriações, equimose e hematomas decorrentes da própria queda no penhasco.

            No entanto, o corpo apresentava uma curiosidade, faltava o dedo indicador direito, cirurgicamente amputado da mão, ao que tudo indica horas antes da queda.

            Enquanto isso, a televisão permanecia ligada, agora com os canais de televisão transmitindo da frente do Instituto Médico Legal da Capital. Duas horas após o corpo ter dado entrada no IML, o diretor da unidade saiu no pátio para conversar com os jornalistas.

            Informou o Diretor que o corpo não apresentava lesões que pudessem apontar para um homicídio, levando a autoridade policial a acreditar que se tratava de um caso de suicídio, no entanto, o corpo apresenta a falta do dedo indicador direito. O médico legista apontou que o dedo foi retirado de forma cirúrgica, assim o delegado do caso entrará em contato com a família para saber se houve algum procedimento cirúrgico neste sentido, e conforme for, encerrar o caso.

            Ao ouvir sobre a falta do dedo no corpo do promotor, automaticamente, o Desembargador olhou para a caixa de veludo, pegou o celular que estava no bolso da calça e ligou para o secretário Estadual de Segurança:

            _ Secretário Gilmar, é o desembargador Diógenes Papuda.

            _ Pois não, Excelência, em que posso te ajudar neste dia sui generis, tendo em vista o passamento do Dr. Armando Silveira.

            _ Pois então! - disse o Desembargador com um fio de voz:

            _ O dedo indicador que falta no corpo, está sobre a minha mesa!

            _ O quê?

            _ Foi isso que o senhor ouviu, o dedo indicador do defunto, do promotor, está sobre a minha mesa!

            _ Fazendo o que? – perguntou o Secretário ainda sem entender muito bem, o que se passava.

            Diante da surpresa do Secretário, o Desembargador se levanta e dá um murro na mesa, assustando o policial e o assessor que estava ao lado e, aos gritos, repete soletrando:

            _ O dedo do D.E.F.U.N.T.O está aqui, no meu gabinete!

            E, desligou o telefone.

            Meia hora depois adentrava no gabinete o delegado do caso e mais dois agentes da Polícia Cientifica – POLITEC.

            Quando o desembargador viu os agentes chegando, fez um novo escândalo, perguntando aos berros quem tinha autorizado o secretário a trazer os agentes policiais e, ao mesmo tempo, ameaçava que se alguém vazasse o que estava acontecendo ali para a imprensa iria se ver com ele.

            O secretário, procurando acalmar o Desembargador, disse que diante dos fatos e da possibilidade do resto mortal que estava em sua mesa pertencer ao corpo de um promotor de justiça, ele não poderia agir de outra forma.

            Acalmada a situação, os agentes da POLITEC vestiram suas luvas, colocaram a caixa contendo o dedo num saco plástico transparente e lacraram, pegaram o envelope que acompanhava a caixa, colocaram em outro envelope e lacraram, saindo em seguida.

            Após a saída dos peritos, o desembargador determinou que o policial e o seu assessor deixassem a sala, ficando lá dentro somente o secretário, o delegado e ele.

            Lá dentro, o desembargador com as duas mãos na cabeça, só temia que a imprensa soubesse que o dedo do promotor tinha sido lhe enviado de presente no Tribunal de Justiça.

            Após uma fase de gritaria e muito palavrão, todos se acalmaram, tendo o secretário garantido à Diógenes que seguraria a imprensa, e que ninguém saberia do ocorrido em seu gabinete. E, assim foi feito.

            Passados três meses e uma frase sequer apareceu na imprensa. A polícia cientifica comprovou que o dedo enviado de presente para o desembargador, de fato pertencia ao corpo do Promotor Armando Silveira, que por sua vez foi enterrado e o inquérito finalizado como sendo mais um caso de suicídio comedido no penhasco do Portão do Inferno.

            Ah, quanto aos servidores que viram o ocorrido, foram levados para a sala da presidência do Tribunal, onde disseram que o caso não tinha passado de um trote e que o dedo era cenográfico. Todos que estavam presentes na ocasião, foram fortemente advertidos para que não falassem sobre o tema, nem mesmo entre os que tinham estado no gabinete, sob pena de processo administrativo disciplinar. Como todos ali dependiam do salário que recebiam, o tema caiu no esquecimento rapidamente.

            Vida normal, relaxado, reforçada a segurança e os cuidados no gabinete, estacionou um furgão de uma conhecida floricultura da cidade, o motorista desce e se apresenta no rol do palácio da justiça, diz que tem um arranjo de flores e um presente para entregar no gabinete do Desembargador Diógenes Papuda. Autorizado a entrar, passou pelo detector de metal, sem qualquer problema, e acompanhado de uma servidora, foi o florista levar os presentes para o Desembargador.

            Já na porta do gabinete, foi recebido pelo assessor Murilo que recebeu em mãos os presentes, assinou o recibo da entrega, e adentrou na sala privada do Desembargador que estava na companhia do Bispo Católico da Capital, que fora até o gabinete discutir assuntos administrativos da mitra, enquanto o desembargador e sua esposa faziam parte do Conselho de leigos.

            Ao entrar na sala, o assessor foi repreendido. O Desembargador perguntou se ele não poderia ter esperado a visita sair. O assessor, muito constrangido, explicou que tinha ficado com medo das flores do arranjo murcharem que, por isso, resolveu entregar logo. O bispo, por sua vez, não disse nada, sequer levantou a cabeça para cumprimentar o assessor. Numa mão, às flores, na outra caixa de bombom de licor. O assessor perguntou ao Desembargador onde poderia deixar os presentes.

            Então, sem a menor educação, indicou com a mão que deixasse em cima da mesa de reuniões. Quando Murilo se preparava para sair, o desembargador disse a seu assessor:

            _ Me alcance aqui a caixa de bombons, sei que bombom de licor são os prediletos do Bispo, que comamos então, já que fomos interrompidos. – completamente sem graça, novamente, o assessor pediu desculpa pela interrupção e entregou a caixa.

            Ao abrir a caixa, o desembargador a empurra para o lado abafando o grito com as mãos na boca. Diante da reação inesperada do desembargador, o bispo se levanta da cadeira e, também abre a caixa. Igualmente a empurra, derrubando-a de cima da mesa, fazendo cair um punhado de algodão com marcas de sangue e um dedo indicador feminino, com a unha pintada de vermelho.

            Na tampa interna da caixa, tinha um envelope branco colado, idêntico ao que veio na caixa de veludo vermelho. Nessa hora, diante da reação nervosa dos cavalheiros, o assessor não pestanejou e abriu imediatamente o envelope, onde encontrou um cartão com o seguinte conteúdo:

A Vossa Excelência, Diógenes Papuda.

O senhor teve a chance de parar a matança, confessando seus pecados, mas preferiu silenciar, bem como silenciar servidores e a imprensa. Como tenho certeza de que, mais uma vez, tentará silenciar a todos, tive o cuidado de, pessoalmente, comunicar a imprensa. Creio que a essa altura o pátio do Palácio da Justiça, deve estar tomado de jornalistas e curiosos.

Se tem dúvidas, ligue a televisão ou vá até o rol.

            Ao terminar a leitura somente com os olhos, o assessor entregou o cartão para o desembargador, como se tivesse fogo nas mãos. Correu ligar a televisão, mais uma vez, trocava de um canal para o outro e a transmissão era a mesma: “um corpo sendo inçado do penhasco da Garganta do Diabo, no quilômetro 42 da Rodovia Emanuel Pinheiro”.

            Na tarja das transmissões, com alguma diferença de redação para outra, diziam que o corpo de bombeiros acabava de tirar do penhasco Portão do Inferno, o corpo de uma mulher aparentando uns cinquenta anos, que a polícia acreditava ser da servidora aposentada do Tribunal de Justiça, Irene Maranhão, após a Polícia Militar ter recebido uma ligação anônima pelo número 190, afirmando que o corpo da mulher estava lá embaixo.

            Enquanto o Bispo e o desembargador olhavam atônitos para a tela da televisão, inúmeras mensagens telemáticas passaram a tilintar no celular do desembargador, eram jornalistas que tinham recebido uma mensagem contendo a foto do dedo da defunta na caixa de bombom, e a indicação que tinha sido enviado como presente para o desembargador Diógenes Papuda.

            Apavorado, o bispo só repetia o mantra de que tinha que sair dali sem ser visto. Por certo, preocupadíssimo com sua própria reputação, pois, sendo o confessor de desembargador por longos anos, tinha motivos para acreditar que onde há fumaça há fogo.

            _ Acalme-se homem! – disse o desembargador, ao ver o desespero do Bispo.

            _ Murilo, tire esse homem daqui pela saída privativa dos desembargadores, e cuide para ele não seja visto saindo do Tribunal.

            _ Sim, Senhor! – respondeu o fiel assessor.

Então, abriu a porta do Gabinete, olhou para um lado, olhou para o outro, como não vinha ninguém, tomou o nervoso bispo pelo braço, levando-o em direção ao elevador privativo que levava até garagem. Ao sair do Elevador, o assessor deu graças por não encontrar ninguém, encaminhou o bispo até um táxi o informando que mais tarde mandaria o motorista do desembargador levar o carro que ficara estacionado na frente do palácio da justiça.

            Enquanto isso, o desembargador ligava para o Secretário de Segurança Pública dizendo que o problema estava se repetindo e que o dedo indicador direito da defunta do dia, estava em sua mesa. Obtendo todo o cuidado de advertir que dessa vez o secretário viesse sozinho, para resolver o problema.

            Dito e feito! Vinte minutos depois, estava no gabinete do desembargador o Secretário de Segurança, em pessoa, para resolver o problema.

            _ Desembargador, está na cara que essas duas mortes estão diretamente ligadas ao senhor, diga-me com o que estamos lidando para que eu possa lhe ajudar. – disse o Secretário de Segurança, com a tranquilidade de quem parecia estar lidando com uma infestação de pragas no Tribunal.

            Irritado, responde o desembargador:

            _ E você acha Gilmar que se eu soubesse já não tinha tomado providências?

            _ É doutor, só que dessa vez o crime chegou mais perto, pois essa senhora, a vítima, é aquela tua ex-assessora acusada de receber propina para relatar processo de forma favorável para uns grileiros de terras no norte do Estado, que no início da Investigação, os Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado - GAEGO afirmou que a mulher recebia em nome do senhor.

            _ Sim, mas depois o Promotor Armando Silveira assumiu o caso, e ficou comprovado que ela fazia uso do meu nome para achacar advogados.

            _ Sei! – respondeu o secretário, sem fazer questão de esconder que não tinha engolido a história.

            _ Secretario Gilmar, mas eu não te chamei aqui para fazer minha biografia, quero que suma com essa porcaria daqui do meu gabinete. – disse o Desembargador, sem delongas, para o atual Secretário de Segurança. Pessoa essa, que durante muito tempo, foi um oficial da Polícia Militar que se ocupava em resolver problemas, diga-se, não muito democráticos, dos altos escalões dos três poderes mato-grossenses.

            No ato, o secretário tira um lenço do bolso da calça, pega aquele dedo morto no chão, repõe na caixa. Pelo interfone pede para que o assessor lhe entregue um saco de lixo.

            Muito prestativo, o assessor desce até o almoxarifado do Palácio, pega um saco de lixo preto, e regressa rapidamente para o gabinete do desembargador. Bate na porta da sala privativa, e entra sem fazer rogado. O secretário coloca a caixa de bombom dentro do saco de lixo, se despede do desembargador, e sai pela saída privativa do Tribunal.

            Desfeito do horrendo presente, volta-se o desembargador para o estagiário que tudo viu. No entanto, antes que o desembargador falasse qualquer palavra, se adiantou o estagiário em dizer que não tinha visto nada.

             Aliviado o desembargador arrumou a gravata e desceu para falar com a imprensa, que fazia alvoroço no rol do palácio.

            Já no átrio do palácio, afirmava com voz mansa e português polido, utilizando-se, inclusive, de palavras estrangeiras, de forma pedante, afirmava que a imprensa tinha sido vítima de “fake News”, que não havia recebido qualquer pacote macabro, que sentia muito pela morte da antiga servidora que teve seus erros, mas que havia cumprido sua pena, e nada mais devia ao estado, que confiava nas autoridades para desvendar a causa morte de Irene Maranhão. Nada mais disse, saiu falando e sorrindo para alguns jornalistas que o acompanhava insistindo no assunto.

            Assim, com a ajuda direta do secretário de Segurança, o religioso e benemérito desembargador conseguiu, mais uma vez, sair incólume do envolvimento em mais uma morte suspeita ocorrida no Portão do Inferno.

            Embora, a imprensa tenha suspeitado que tinha algo estranho acontecendo, duas mortes semelhantes ocorridas em pouco tempo, um jornalista, desses que fazem aqueles programas sensacionalistas sobre a criminalidade nas periferias da cidade, até comentou uma ou duas vezes que tinha algo; duas mortes no mesmo local em questão de semanas, mas depois, foi obrigado a mudar de assunto pela diretoria da empresa televisiva, sob a alegação de que levantar suspeitas sobre as mortes no portal do inferno, atrapalharia o turismo local, desde então, tudo voltou ao normal.

            Três meses passaram rápido, mais uma tarde de julgamento presencial seguia o seu rito normal, com os desembargadores entediados de ter que ouvir as sustentações orais de alguns poucos advogados, alguns com decisão pré-agendada, que só compareciam para lembrar o relator que o combinado estava de pé; outros pobres diabos, que ainda acreditavam que um direito certo, um bom discurso e um pouco de “salamaleque”, seria o suficiente para ganhar a causa para o seu cliente. Pobres incautos!

            Entre um intervalo regimental e outro, o desembargador verificou que tinha mais de vinte chamadas perdidas em seu celular e mensagens telemáticas de sua esposa e da prima, esposa do Marinho. Preocupado, retornou para a esposa:

            _ Diga Mariluz, aconteceu alguma coisa? Sabe que tenho julgamentos hoje, não posso ficar atendendo o telefone.

            _ Sim, eu sei, mas Adriana está desesperada, Marinho sumiu!

            _ Como sumiu?

            _ Sumiu, saiu ontem para atender um cliente em Rosário Oeste, não chegou na reunião combinada com o cliente, e não voltou para a casa.

            Primos, amigos e sócios pensou o Desembargador: “filho da mãe, foi para a casa da amante e perdeu a hora, agora, deve estar pensando em como sair dessa enrascada”. Sorriu, imaginando o primo no bem-bom e voltou a prestar atenção no que falava a esposa, e disse:

            _ Não se preocupem, vocês sabem como é Marinho, no caminho deve ter encontrado um cliente cujo ganho mostrou-se maior, ele esqueceu a agenda e foi atrás. Até a tarde ou no mais tardar até amanhã estará de volta.         

            No outro dia, sexta-feira, resolveu pegar o carro e descansar na casa de veraneio na chapada dos Guimarães, ligou para o Murilo e o instruiu a dizer para todos que perguntasse sobre ele, que ele teve um contratempo em casa e que não iria para o Tribunal naquele dia.

            Para tirar o foco sobre o desaparecimento de Marinho, resolveu levar a prima, seus três filhos, e a esposa consigo, todos para Chapada almoçar no Mirante do Penhasco, andar pelas ruas cheias de turistas e a tarde brincar com as crianças na piscina, enquanto esperava Marinho chegar com aquela cara de tacho.

            Começou a cair a noite e Marinho não chegava. Diógenes resolveu ligar para o primo. O Celular tocou, tocou e ele não atendeu, então resolveu mandar uma mensagem, perguntando onde ele havia se metido, esperou um pouco pela resposta, e não veio resposta nenhuma.

            Preocupado, ligou para o secretário de Segurança:

            _ Gilmar, meu primo Marinho sumiu!

            _ Como sumiu?

            _ Oras Gilmar, sumiu, sumindo. Faz mais de 48 horas, que não temos notícias dele. Saiu, segundo a esposa, para atender um cliente em Rosário Oeste e sumiu.

            _ Ok, entendi, vou verificar onde ele está e retorno para o senhor.

            _ No aguardo, seja rápido, a mulher dele vai me deixar louco.

            Incomodado com a demora do secretário em retornar, trazendo notícias, ligou para Gilmar:

            _ Gilmar, e aí? Achou o homem, pelo amor de Deus?

            _ Não Desembargador, nem sombra, desapareceu na fumaça, o seu carro foi visto pela última vez num posto de combustível da Avenida Miguel Sutil, depois disso, sumiu do radar.

            _ Ache ele, Gilmar, faça o teu serviço!

            _ Sim, senhor!

            Preocupado, adormeceu no escritório da casa, esperando algum retorno do secretário de Segurança, contando que havia encontrado o primo e mais três ou quadro fazendeiros advindos do interior do Estado, em alguma chácara na região metropolitana, cercados de “Sugar Babys” e seus velhos babões, mas de bolso cheio de “sojadólar”.

            Levantou quebrado, agora muito preocupado. Onde estaria o primo e todos os segredos que ele guardava?  Pois é, o grande mal de se estar junto do próprio mal é a quantidade de atrocidades, vilanias e cafajestagens que se pratica até chegar no topo, e como não dá para se chegar no topo sozinho, o primo Mário sempre foi o seu braço direito e, algumas vezes, o esquerdo também.

            Chegou o domingo, e todos na casa já não conseguiam esconder a preocupação, Marinho tinha evaporado. A prima tremia, chorava a e tomava chá, naquelas alturas, já tinha começado a exigir do Desembargador que achasse seu marido. Aos gritos dizia que se alguma coisa tivesse acontecido com ele, ela se vingaria de Diógenes. Claro que a prima não tinha provas, mas não era besta, sabia que a vida de luxo que eles levavam não tinha muito a ver com advocacia praticada pelo esposo.

Meio-dia em ponto, todos apavorados, inclusive o desembargador que se trancou com o secretário de Segurança no Escritório e de lá não saiam à horas. Mesmo assim, a empregada cumpriu seu papel, colocou a mesa para o almoço de todos, e a esposa, dona Mariluz, foi chamá-lo para almoçar, mas foi interrompida pela campainha da porta.

            _ Deixe Matilde, que eu mesmo abro a porta. – Disse a patroa a empregada, ocupada em terminar a arrumação da mesa, para melhor agradar os patrões naquele dia atípico.

            Do outro lado da porta, um entregador com uma encomenda, uma caixa de veludo dourado, finamente bordada com pedraria.

            _ Encomenda para o Doutor Diógenes, madame!

            _ Sim! Sim, sou sua esposa, eu mesmo entrego.

            _ Ah, sim, obrigado!

            _ Precisa assinar alguma coisa?

            _ Não, senhora madame, só entregar para ele mesmo.

            Ao entrar no escritório com a caixa nas mãos, o Desembargador deu um grito de horror. Correu, pegou a caixa das mãos da esposa e mandou que ela saísse do recinto. Ela, sem entender nada, saiu e bateu a porta.

            Sozinhos no recinto novamente, faltava coragem aos dois para abrir a caixa, pois ambos sabiam o que continha lá dentro. Diante da descarada insegurança do Desembargador Diógenes, o secretário Gilmar ligou a televisão e, mais uma vez, as transmissões eram do Penhasco Portão do Inferno, não importava qual era o canal, a matéria era a mesma, “terceiro corpo, encontrado no Penhasco em poucos meses”.

            Na manchete estava escrito: “Na borda do penhasco foi encontrado uma carteira de documentos com o nome do advogado cuiabano, Mário Papuda”. Em outro canal, Dr. Marinho era destacado como “um homem de bem, de família, temente a Deus”, e o mais importante: “primo do poderoso desembargador Diógenes Papuda”.

            Naquela altura, já nada mais poderia fazer o senhor Diógenes. Enquanto tentava processar a cruel realidade, ouviu vindo da cozinha gritos e o choro das mulheres, surpreendidas com o noticiário estampado na televisão.  

            A Prima desfaleceu ao saber da morte do marido de forma tão abrupta, justo quando já estava pensando em qual joalheria exigiria sua “joia-perdão” dessa vez, pois tolo é quem pensa que uma pulada de cerca do marido não tem perdão. Bom, perdão o marido não tem mesmo, mas tem quilates, viagens internacionais, jantares de mil talheres, e sim, para essa vida sempre terá um perdão a espera na sociedade da capital cuiabana, ou em qualquer outra capital brasileira.

            Enquanto isso, Mariluz perguntou ao marido, que acabava de adentrar a cozinha para socorrer a mulher do primo, como poderia isso ter acontecido. Diógenes dava pequenos tapinhas no rosto da prima que insistia em permanecer desmaiada.

            Passados alguns minutos e tendo acalmado os ânimos, Diógenes determinou ao secretário de Segurança que fosse até o local e abafasse o máximo que pudesse o ocorrido, que tentasse ao máximo desvincular o defunto do nome dele. Até ontem, Mario era uma importante fonte de renda do desembargador, hoje é só um defunto mesmo, que lhe deixou três crianças para ele terminar de criar.

            E, como ele dizia: “ossos do ofício, a vida não é só ganhar”.

            Mais uma vez, o Secretário de Segurança teve que subornar e ameaçar os servidores do Instituto Médico Legal para que não espalhasse que o último defunto, tal como os outros dois, também tive o dedo do indicador direito arrancado.

            Na segunda-feira enterraram Marinho, com grande pompa, no jazido da família no Cemitério da Piedade. A sociedade cuiabana estava lá em peso, uns para ter certeza de que Dr. Marinho iria de fato para a tumba, outros para poder ver a cara abatida do desembargador Diógenes, que acabava de verificar que os Papudas não eram imortais como pensava.

            Abatido, Diógenes se recusava deixar a Chapada dos Guimarães, não queria ficar nem na companhia de Dona Mariluz, sua sempre fiel esposa e escudeira. Uma vez por semana recebia Murilo para despachar com ele assuntos que não poderiam ser resolvidos por videoconferência.

            Na maioria do tempo, estava bêbado, prostrado no sofá. Queria deixar a letargia, mas o pavor lhe consumia, tinha verdades que só ele sabia, as mortes tinham sido um recado muito claro, mas,

Livro: CONTOS E (DES)CONTOS DA JUSTIÇA

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