O PATRIOTA INJUSTIÇADO

Contos | 2025 - MAIO - Laços de família: Histórias de amor e conexão | Gilmair Ribeiro da Silva
Publicado em 04 de Abril de 2025 ás 20h 18min

O Patriota Injustiçado

 

Era uma tarde longa, de calor escaldante, típica da região noroeste do Estado de São Paulo, onde o verão preguiçoso havia se apresentado oficialmente há pouco mais de vinte dias. Nessas ocasiões, os trabalhadores da região, aproveitando o descanso do feriado municipal, seguido de feriado estadual, como é o costume, retornam de viagens breves, tornando os empreendimentos comerciais, em cidades médias, por semanas esvaziados e monótonos, o mesmo ocorrendo com as repartições públicas, exceto, as delegacias de polícia, por tratar-se de trabalho essencial.

A paz reinava no 9º distrito policial, naquele dia, o que não era comum, tanto que a ausência de público motivou os servidores à agilizarem seus trabalhos: no caso dos escrivães - os inquéritos: cumprimento de ofícios, pedido de perícias, intimações e despachos formais; e no caso dos investigadores, agilizar o cumprimento às ordens de serviços recebidas - A esperança de todos, e “a esperança é a última que morre, mas morre”, dizia a escrivã Luciana, era de que a Guarda Civil ou a Polícia Militar não apresentasse nenhum flagrante naquele dia, fatos tais que, às vezes, chegam a demorar duas ou três horas para a conclusão. Sobre isso, dizia o Investigador Jesuel, o “Jazão” “essa merda de lugar é imprevisível, quando você pensa que o dia vai ser tranquilo, acaba saindo daqui depois do horário”. Era isso o que normalmente ocorria, e nem dava para reclamar, porque policiais civis recebem uma merreca mensal, o tal RTP (Referência sobre Trabalho Policial), que “justifica” essa finalidade.

De repente..., ouviu-se passos nas escadas de onde uma voz ressoou: - “lembrem-se: vocês ganham RTP”, sempre ouvindo conversas, por temer ser traído, era o dr. Mário Antonio, unipresente .  Nesses momentos, mesmo exaustos, todos olhavam de lado com cara de deboche, tendo em vista que o delegado não era levado a sério por ninguém, por tratar-se, na verdade, de uma figura retórica, folclórica, que recebia, pelas costas o apelido de “Horácio”, colocado pelo escrivão Galdino, o chefe de cartório, fazendo referência a personagem de gibi “que tinha os braços curtinhos”, segundo o próprio escriba.

Horácio, na verdade era um estorvo na delegacia, mas também um mal necessário, tendo que, imprestável que era, ninguém lhe dava conhecimento das investigações em andamento, fazendo com que chegasse às suas mãos o trabalho já finalizado, para que então ele deixasse o jornal, vestisse o paletó, arranjasse a gravata, e fizesse o despacho para indiciamento do “indigitado” como gostava de dizer; utilizando na fundamentação termos em latim para mostrar-se erudito.  Quando fazia os relatórios de conclusão de um inquérito para encaminha-lo à apreciação da justiça, escrevia a palavra “preclaro Parquet” para se referir ao Ministério Público e “festejado” magistrado para se referir à juízes. Mas todos internamente sabiam que o escrivão chefe, formado em letras, leitor de literatura, fazia a correção das concordâncias sofríveis do chefe, para que fosse encaminhado ao judiciário um relatório bem escrito e fundamentado.

Galdino era culto e perverso, mas ganhou a confiança do chefe corrigindo as besteiras que o delegado escrevia. Na ausência de Horácio, Galdino fazia zoeira comentando aos colegas a quantidade de erros de concordância misturados às expressões em latim. Em momentos de descontração o dr. Horácio contava suas experiências, envolvendo grandes investigações no passado, sempre em São Paulo, mas ninguém acreditava nas estórias que ele contava com ênfase e repetidamente, para diversão coletiva quando se fazia ausente. Sofrível, como dizia o investigador Vitorino, o “antigão” da turma, já experiente, com trinta anos de serviços prestados e muitas estórias para contar, “era quando Horácio se dispunha a interpretar a legislação e ensinar leis e enquadramentos”. Essa era a parte que o delegado mais gostava: “dar umas aulinhas” era só encontrar um ouvido atento que este se tornava seu palco. Por esse motivo, os servidores da delegacia dispensavam sempre a companhia do delegado nos depoimento e investigações, tendo em vista que as longas citações de leis e formalidades apresentadas por ele eram tratadas de “Masturbação jurídica”; claro, sempre pelas costas. Ouvia-se os passos no corredor e  -  logo alguém dizia: “lá vem a masturbação jurídica.”

No entanto, naquela sexta-feira, escaldante e sonolenta de verão,  por volta de meio dia, todos haviam saído para o almoço, exceto o carcereiro Fabiano Albuquerque, o Fabião,  que ficara na delegacia para que a repartição não fechasse as portas;  ele, no entanto,  era limitado, de poucas letras e apresentava uma retórica informal, recheada de gírias e palavrões,  e não era fino no trato; ou seja, estava ali para algum atendimento imediato: registros de boletins de ocorrência mais simples, e  no caso de ocorrências mais graves, dar assistência e pedir que a vítima ou policiais de outras unidades aguardassem a chegada do escrivão chefe, ou da escrivã Luciana, ou mesmo o delegado para formalização do procedimento.

- De repente, ouviu-se um barulho nas escadas de madeira roídas de cupim; no topo apareceu um homem magro, alto, de chapéu na cabeça, calçando botinas manchadas de barro, aparentemente um sitiante, pertencente a comunidade rural da região. Ele se dirigiu a recepção:

- Bom dia doutor, (pessoas simples chamam funcionários que o atendem assim por acreditar que está diante de uma autoridade) meu nome é Euzébio, trago para o senhor um problema de flagrante.

- Flagrante? – o carcereiro sentiu um arrepio no corpo - era só essa que faltava, sozinho aqui e.....

- Me conta isso direito, senhor, disse sem pestanejar.

Respondeu o caboclo:

- Estive por dois meses acampado diante do tiro-de-guerra, lá ficava noite e dia, protestando contra a eleição do novo presidente, e num dado momento, passei a desconfiar que minha mulher andava me traindo, desse modo, saí hoje do acampamento e me dirigi à minha casa, o senhor entende?

- Ainda, não, prossiga...

Foi quando vi o momento em que o safado saia de minha própria casa, num carro vermelho levando minha mulher. Segui os dois e vi que eles entraram num hotelzinho vagabundo localizado ali no centro, há quatro quadras daqui. Quero que vocês vão lá e prendam o cara em flagrante, ora!

O Carcereiro do seu jeitão, tentou explicar que modernamente isso não pode ser aplicado mais, que flagrante de adultério era procedimento normal no código antigo; mas indignado, Euzébio insistia, na sua argumentação:

- Eu sou vítima! Estive no acampamento servindo o meu país... Então ninguém faz nada? Pago meus impostos! Eu que sempre acreditei na polícia como aliada dos patriotas....

O carcereiro explicava de outra maneira....

Até que, num dado momento, para ser ainda mais convincente, Eusébio, disse:

- Veja bem, coloque-se no meu lugar...

Antes que terminasse a frase, o carcereiro, indignado, deu um pulo da cadeira:

- No lugar do outro talvez, no seu lugar JAMAIS, está me estranhando, maluco?

As escadas rangeram e no topo apareceu o delegado, dr. Horácio, ele havia escutado a conversa, e, ato contínuo, convidou Euzébio para que entrasse à sua sala, para a realização do que mais gostava de fazer: Ali estava um ouvido atento, seu palco.  Os demais companheiros que também haviam retornado do almoço se entreolharam, no silêncio com cara de deboche. O dia estava completo.

Gilmair Ribeiro da Silva - Piracicaba SP

 

 

 

 

Comentários

Mui belo seu conto, poeta! Eu vi a delegacia do meu bairro cheio de homens com camisa amarela e uma bandeira desbotada na mão. Acredito ser de casos semelhantes! (risos) Mui bom, mesmo!

Lorde Égamo | 05/04/2025 ás 17:21 Responder Comentários

Olá! Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo. Ao utilizar este site, você concorda com o uso de cookies.