O Morro dos Gigantes Adormecidos
Contos | Metade Dita, Metade Sentina : Contos. crônicas, cartas, poemas e confissões que talvez fossem suas. | Silvia Dos Santos AlvesPublicado em 21 de Maio de 2025 ás 20h 50min
No sítio do meu pai, a paisagem era emoldurada por um gigante adormecido: um morro altíssimo, sua espinha dorsal coberta por um emaranhado verde e salpicada por pedras colossais. Para nós, crianças de pés descalços e imaginação fértil, aquele não era apenas um acidente geográfico, mas o reino secreto dos gigantes de pedra, seres ancestrais petrificados em sono eterno.
As pedras eram nossos castelos, nossos labirintos, nossos esconderijos perfeitos. Eram lisas como pele de dinossauro, ásperas como casca de árvore centenária, algumas tão grandes que pareciam ter caído do céu numa fúria divina. Entre elas, a vegetação rasteira tecia um tapete irregular, ora macio de musgo, ora espetado de capim navalha.
Nossas brincadeiras de esconde-esconde no morro eram épicas. Aquele era o nosso campo de batalha silencioso, onde a estratégia e o silêncio eram as armas mais poderosas. Eu, o mais novo, muitas vezes era o primeiro a ser encontrado, tropeçando nas raízes expostas ou rindo alto demais ao me sentir seguro atrás de um paredão de pedra. Meus irmãos, mais velhos e astutos, desapareciam como por magia, fundindo-se com as sombras projetadas pelas rochas ou espreitando por trás de arbustos densos.
Lembro-me da adrenalina de ouvir seus passos se aproximando, o coração pulsando forte no peito enquanto eu me encolhia atrás de uma pedra do tamanho de um carro. Sentia a textura fria e rugosa sob meus dedos, o cheiro úmido da terra e das folhas em decomposição. O mundo se reduzia àquele pequeno espaço, ao som abafado da minha respiração e ao farfalhar distante das folhas agitadas pelo vento.
Às vezes, a brincadeira se transformava em exploração. Escalávamos as pedras mais baixas, nossos pequenos corpos ágeis encontrando apoio em frestas e saliências. Do alto, o sítio se revelava como um mapa verde e marrom, com o rio serpenteando preguiçosamente na distância e a casa dos nossos pais parecendo uma miniatura acolhedora. Sentíamos como se tivéssemos conquistado o mundo, dominando o reino dos gigantes adormecidos.
Havia uma pedra em particular que chamávamos de "O Trono". Era achatada no topo e oferecia uma vista panorâmica de todo o sítio. Quem chegasse primeiro ao Trono era o rei ou a rainha daquele dia, com o direito de ditar as regras da próxima rodada ou simplesmente contemplar o seu domínio imaginário. As disputas pelo Trono eram acirradas, envolvendo corridas ofegantes e desvios estratégicos entre as pedras.
Com o tempo, crescemos e as brincadeiras no morro se tornaram menos frequentes. Os gigantes de pedra foram perdendo um pouco do seu mistério, dando lugar às preocupações da adolescência e da vida adulta. Mas, de vez em quando, quando volto ao sítio do meu pai e contemplo a silhueta imponente do morro, uma onda de nostalgia me invade.
As pedras colossais ainda estão lá, imutáveis em sua majestade silenciosa. E, por um instante, consigo reviver a emoção da caça, a alegria da descoberta e a cumplicidade fraterna que ecoavam entre elas. O morro do meu pai não era apenas um acidente geográfico. Era o palco das nossas primeiras aventuras, o guardião das nossas memórias mais puras e o lar secreto dos gigantes adormecidos que, em nossa infância, ganhavam vida a cada passo e a cada esconderijo. E, de alguma forma, uma pequena parte daquela magia ainda reside ali, esperando para ser redescoberta.
Livro: FRAGMENTOS DO PASSADO