O MACHISMO QUE NOS VIGIA ATRÁS DA PORTA

Crônicas | Valcastilho
Publicado em 07 de Fevereiro de 2024 ás 16h 50min

Mandei para revisão textual uma pesquisa que fiz sobre a proteção dos direitos das mulheres nas Constituições brasileiras.

                A ideia é um livro de direito escrito por uma mulher, falando de direitos e garantias individuais para mulheres.

                Para tanto, ao longo do trabalho, fiz questão de direcionar o texto para o gênero feminino, utilizando frases como “a leitora”, “observe mulheres” e por aí foi.

                Eis que recebo o texto de volta, e os pronomes femininos foram substituídos pelo masculino, passando o texto a falar com o “o leitor”.

                Perguntei, porque foi modificado, sem sequer falar comigo!

                Resposta:  O texto é ótimo, tem potencial para ser indicado pelas academias, inclusive, pelo ineditismo, porém, como você escreveu, dificultará as indicações acadêmicas.

                Estou aqui pensando, nós do gênero feminino somos cinquenta por cento da população do planeta, e não temos a liberdade intelectual, linguística, de escolher qual pronome usar num trabalho, sob pena, de se escolher o pronome “feminino”, o revisor mudar, sem sequer dar ao trabalho de perguntar a motivação da escolha.

                _ A academia não vai te ler, se você não usar a forma culta da língua. Me disse o Revisor convicto.

                Agora, me diga, o pronome utilizado mudará o conteúdo da pesquisa?

                Não quero escrever um livro de direito, falando dos nossos direitos, e o tempo todo, o discurso estar direcionado à norma culta, que, coincidentemente, é masculina.

                Já aos berros, porque sou muito calma...

                Perguntei, porque diabos, eu mulher tenho que escrever raciocinando o tempo todo na gramática masculina, inclusive, quando estou escrevendo para cinquenta por cento da população!

                Oras, se você mantiver essa forma de escrita, ela ficará restrita a um “gueto”!

                Entenderam, somos cinquenta por cento do planeta, mas, se criarmos textos técnicos e utilizarmos somente pronomes femininos, mesmo que esse texto esteja falando de nós, o trabalho será academicamente desqualificado.

                Não temos liberdade linguística para marcar nossa produção literária.  

                Podemos até escrever, desde que não queiramos ter liberdade linguística, isso já é demais.

                E, engraçado, um texto de direito direcionando para o público feminino especificamente, poderá ser discriminado pela utilização do pronome “ela”, mas, essa mesma academia, não fica envergonhada que seus professores em sala de aula reproduza a seguinte frase de Sigmund Freud, “La anatomía es el destino. Las niñas sufren toda la vida el trauma de la envidia del pene tras descubrir que están anatómicamente incompletas”, algumas vezes dita de forma misógina e sem contexto histórico.

                Os textos misóginos de Sigmund Freud nunca sofreram qualquer censura, linguista, sociológica ou moral, pela academia. Mas, o meu texto direcionado para as “Simone de Beauvoir”, poderá não ser bem-visto. Que novidade! Que pena!

                Então, lhe disse que estava sendo machista.

                Prontamente, me respondeu que estava analisando o texto, sob a ótica da língua culta, que não tinha nada a ver com machismo.

                Mais, espantada ainda, perguntei:

                Se eu substituir o substantivo “leitor” por “leitora”, não usarei a regra culta da língua?

                Não, não usará!

                 Você tem noção de que isso é machismo linguístico estrutural, né?

                _ Não, não é, são regras da norma culta da língua!          

                _ Me responde, se ambos os substantivos não mudam o sentido do texto, por que eu só posso usar o pronome masculino?

                _ A me poupe, você quer criar polemica onde não tem, são só letras!

                _ Não, não são, na medida que você está afirmando que a academia de direito não indicara o meu trabalho, porque ao invés de eu me dirigir aos “leitores”, me dirigi às “leitoras”?

                Pois bem, pedi que restabelecesse o meu texto para o original, conforme estava escrito, e lhe disse que, se um dia a academia quiser ler, terá que ler o primeiro texto de direito constitucional, dirigido ao pronome “ela”.

                E, não! Não somos guetos, somos cinquenta por cento da população mundial, e se quisermos escrever um livro direcionado para nós, assim, nós o escreveremos.

 

 

 

 

Comentários

Ótimo texto! Se nós, mulheres, não defendermos nossos direitos, quem os defenderá? A sociedade, ainda machista? Parabéns pela escrita.

ISOLTI MARLI COSSETIN | 18/02/2024 ás 10:35 Responder Comentários
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