O Jardim

Contos | Dolores Flor
Publicado em 08 de Fevereiro de 2022 ás 09h 48min

— Eu prefiro o pomar! — Afirmou Lúcia com aquela voz calma e determinada. Contendo, toda a sabedoria peculiar de seus quatro anos de idade.

— Já eu gosto mais do canteiro das hortaliças. — Salientou Suzana, tão altiva e séria como alguém de sete anos pode ser.

Ambas são minhas netas, são primas que se dão muito bem. Com muita frequência estão comigo. Penso que isso é um grande presente de Deus. Os filhos são presentes divinos, já os netos são a própria alegria divina.

Após a aposentadoria conseguir me mudar para uma área um pouco mais afastada. Uma chácara já formada. Com o pequeno pasto, curral, chiqueiro e galinheiro. O básico para uma vida produtiva ao lado da natureza. Contudo, mesmo as coisas que parecem prontas precisam de retoques, precisam de mudanças. E assim se procedeu. Eu e meu esposo dedicamos o nosso tempo e a nossa energia em deixar o lugar com a nossa cara, as nossas marcas e sonhos.

Tem sido gratificante essa jornada nos últimos anos. É engraçado observar com sabedoria o olhar da simplicidade. A maioria das pessoas que nos visita, e, tornaram-se próximo nos últimos quinze anos nos veem de maneira modesta. E, nos olhos como se toda a nossa jornada ocorrera naquelas terras. E, o mais interessante é como se o fato da simplicidade nos colasse um véu de pouco conhecimento ou pouco instrução. Isso é comum, principalmente nos mais jovens, e daqueles que tem a sua vida inteiramente urbana.

Tenho muito orgulho em tudo que tenho aqui. Vejo tudo como divino, e sendo assim, a gratidão me consome. Porém, nem as criações e demais plantações me dão mais prazer do que o jardim. E, naquele dia estava dedicada a cuidar do jardim, e tinha minhas netas como fieis assistentes.

— Não esqueçam as suas luvas. Não querem ferir os seus dedos. — Falei a elas alertando da importância de se cuidarem.

— Mas, vovó você não está de luvas. — Falou Suzana, com um ar de querer ser grande e dar conta das mesmas atividades do que eu.

— Sim, Suzana é verdade! Não estou de luvas, mas eu sou diferente, já estou acostumada. E no momento certo colocarei as luvas, só que agora não preciso. É assim na vida também. — Deixei sair uma expressão de recordação em meus semblantes.

— Vovó, o que as luvas tem haver com a vida das pessoas? —Me indagou Lúcia.

Naquele momento comecei a explicar a íntima relação entre cultivar um jardim e cultivar a vida com sabedoria. Não quis ser enfadonha, nem muito menos abstrata de mais. Pois se tratava de criaturinhas lindas e, sonhadoras, precisavam de conhecimento e sabedoria sem perder a inocência e esperança na vida. Diante disso me coloquei a relatar.

— É simples meninas, pense que Deus nos criou com sua imagem e semelhança. Então temos também na sua devida proporção o poder da criação. Aí que muitos se enganam, a criação exige cuidado e responsabilidade. Nem tudo está no controle daquele que cultiva uma rosa, ela tem suas características, e, possui seu tempo e necessidades que precisam ser observadas e quando possível atendidas. A vida é cultivar e cativar, em cada momento temos a grande oportunidade para tal missão.

Nesse instante, como se fosse combinado pousou algumas borboletas nas calêndulas plantadas próximas de nós.

— Observem bem! —  Disse de maneira direta. Logo em seguida prossegui.

— As borboletas escolhem umas flores e não outras. Porque isso acontece? Seria sorte?

— Acho que não. Elas deverem está procurando néctar, e nem todas tem. —  Disse Suzana.

— Isso mesmo. Muito bem menina.

Comparando a cena, pude descrever que nem todos possui o néctar para atrair as borboletas. Em outras palavras as oportunidades são mais construídas do que sorte. Se a borboleta vier e não houver néctar ela não irá até a flor. Do mesmo modo são as pessoas, as vezes elas esperam, e com frequência por muito tempo. Só que as vezes esquecem de preparar-se para o momento certo. É importante ter paciência, mas paciência sem preparo pode se tornar em preguiça, e, daí em raiva e frustração. É preciso de gratidão com tudo. Nisso Lúcia me indagou.

— Mas temos que ser gratos mesmo com as coisas ruins?

— Sim pequeninas. Afinal, não sabemos os propósitos de todas as coisas. Certas coisas só são compreendidas depois da tempestade. É na calmaria que se permite refletir e montar as peças do quebra cabeça. Observe as rosas.

Caminhando em direção ao roseiral, mostrei aquela beleza de canteiros. Nos canteiros tinham rosas vermelhas, rosadas, amarelas, brancas, champagne e umas poucas azuis. Todas bem cuidadas. Mas de tamanhos e quantidade de flores bem diferentes. Plantadas em espaços distantes entre si.

— Olhem como é lindo as cores do roseiral. Percebem que a distância é grande entre os corredores? Imagina como seria se eu não podasse, e não tivesse o cuidado de deixar espaços entre as plantas. As roseiras teriam crescidas de tão maneira que não seria possível caminhar entre elas. Os espinhos as protegem de alguns predadores, isso é bom. Mas, os galhos e consequentemente seus espinhos devem ser podados por nós, que temos discernimentos sobre o jardim.

Naquela tarde não falei mais sobre lição de vida. Tudo tem limite e até o aprendizado, tem que ser dosado dia após dia. Me concentrei em adubar, podar, regar o belíssimo jardim. Nós três cuidados por horas não só das calêndulas e roseiras. Cuidamos também das camélias, primaveras, hortênsias, cravos, amores perfeitos, azaleias, lírios. E, deixamos as rosas do deserto, as orquídeas, os jacintos, as lavandas e bromélias.

Minhas ajudantes queriam continuar, mesmo cansadas. Mas, por enquanto chega. Tinha sido um bom dia. Nos recolhemos para nos limpar e descansar um pouco.

Naquela noite fiz uma sopa bem colorida e muito nutritiva. Enquanto minhas netas comiam, percebi que brincavam alegremente com a comida. Pareciam fazer figuras e desenho no canto do prato com os pedacinhos dos legumes, macarrão e carne que compunham a refeição. Fiquei um tempo a olhar, sem querer tirar a criatividade daquela atividade, tão compenetradas, que ambas montavam e mostravam uma para a outra. Finalmente indaguei a elas.

— O que estão fazendo? — Perguntei de maneira suave e discreta.

— Estamos fazendo os nossos jardins.

Disseram como se ensaiassem. Não me convinha interromper e deixei-as a mesa para concluir a refeição em seus devidos tempos. O assunto do jardim não este mais presente naquela noite, pelo menos não na minha presença.

Ao dormir pediram para que eu lesse uma história para elas. Esse era um ato que já nutríamos de geração a geração. E sempre que pudermos essa tradição será mantida através dos tempos.

Mesmo que a tecnologia evolua, a ponto de a realidade virtual tornar visível as nossas palavras. Nunca irá substituir aquela simplicidade, e para muitos antiguidade. O papel ainda é necessário, a leitura para as pessoas pensarem e despertarem a imaginação, é fundamental. É a leitura que forma os sonhos. Perguntei a elas o que queriam naquela noite. Como se não houvesse nenhuma surpresa responderam:

— Crônicas de Nárnia! Queremos Crônicas de Nárnia! — Afirmaram de maneira empolgada.

Peguei o livro e abrir em A Cadeira de Prata. As figuras de Eustáquio, Jill e do Brejeiro saltaram aos olhos. Elas já conheciam aquela história. Especialmente Jill, ela não tinha a grandiosidade, esperança e determinação das rainhas do sul e do oeste, que tanto as inspiravam.

Li durante um bom tempo. A leitura não servia para deixa-las com sono. Acredito que isso seja de família. A leitura servia para embalar os sonhos. E quanto mais se lia mais se deseja ler. E foi assim aquela noite. Depois de longa leitura paramos e deixei-as após rezarmos juntas, conversando um pouco até pegarem no sono. Isso fazia bem, acredito que para toda a família.

Na manhã seguinte acordaram quando eu voltara de tratar da criação. Estavam empolgadas, mesmo que um pouco sonolenta. Perguntaram que hora eu iria cuidar das plantas. Disse apenas que seria mais tarde. Pensei que estivessem falando do pomar ou das hortaliças. Sim, também era sobre estas. Mas estavam com grandes expectativas quanto ao jardim.

Sentei-me ao lado delas, me servir um pouco de café. Enquanto eu saboreava um pão de queijo, notei que conversavam sobre sonhos que tinham tido a noite. Parecia empolgante não que estivessem escondendo algo, apenas compenetras em destalhar uma para outra o que imaginaram em suas fantasias.

É muito bom ver as crianças empolgadas com os sonhos, com o mundo. Isso sempre é revigorante, sonhos sem medo, sem malícia. Apenas aventuras e descobertas. Esse é mais um dos inúmeros presentes recebidos.

Como a leitura antes de dormir fora sobre Nárnia. Fiquei a imaginar intimamente que histórias haveriam criado. Afinal, o mundo de C. S. Lewis é um lugar de magia e fantasia, que encanta tanto crianças como adultos. Me coloquei também naquele universo, como que se eu pudesse antecipar as histórias e magicamente me transportar também para mágica.

Seres mitológicos e magia enfeitaram a minha imaginação. E, em cada possível alternativa minhas netas se apresentavam de maneira mais destemida. Sempre repleta de amigos e desafios. Vencendo as batalhas em seus mundos mágico. Imaginei roupas e cenários, batalhas e tempos de paz, um mundo narniano completo. Mesmo com os limites que se fazem presentes dos livros. Ali poderíamos ultrapassar e seguir muito além dos mares infindáveis do sul. Sorri, e voltei minha atenção para as minhas netas.

Naquele instante me clareou um pouco mais a minha atenção. Como a neblina que se dissipa no decorrer do dia. Assim aconteceu comigo de forma lúcida e inesperada.

Com todo encanto possível em Nárnia, este não era o assunto de suas conversas. Não era o conteúdo de seus sonhos. Era algo muito diferente, era algo inesperadamente simples. E, muito mais belo em sua essência.

Elas comentavam uma para outra que sonharam que tinham um grande e belo jardim. E, ao descreverem os cuidados e as flores presentes, notei a sensação de realização desabrochando vigorosamente em meu peito. 

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