O indigente ( A visão de quem não é visto)
Crônicas | ADAILTON LIMAPublicado em 06 de Setembro de 2024 ás 09h 29min
O indigente ( A visão de quem não é visto)
Todos os dias no meu caminho tradicional, vejo um indigente em um canto da praça, às vezes cantarolando alguma música, outras tantas rabiscando alguma coisa em um caderno amassado. Ficava curioso sobre a vida daquela figura emblemática, que nunca vi pedindo esmolas ou algum benefício para si. Estava sempre enrolado em um cobertor, com um sorriso e um olhar distante, parecendo que via algo que ninguém conseguia ver.
Mas aquele ritual matinal até o trabalho, foi quebrado em um dia especial, a personagem da praça estava dormindo, parado em um sono pesado, que nem as buzinas inquietas dos carros ao seu redor, eram capazes de tirá-lo daquele transe contínuo. Fiquei preocupado com tamanha quietude, olhei ao redor procurando alguém que falasse algo, mas o frenesi diário das pessoas, não davam conta da minha preocupação. Mas quem se importaria com um morador de rua? Resposta: Eu. Não que fosse a pessoa mais sensível do planeta, mas pontualmente reservava em meu coração um pouco de benevolência. Pessoalmente, não tinha o hábito de dar esmolas ou ajuda para moradores de rua, defendia uma tese que essas doações, eram uma espécie de manutenção para que essas pessoas continuassem na mesma situação de penúria, e a administração pública continuaria na zona de conforto, se essas pessoas não se rebelassem.
Mas voltando para nosso estático protagonista, que como estátua, permanecia deitado e um chão esplêndido, comprei um lanche completo, para ter um motivo para incomodar aquele sono de orfeu tão pesado. Tomei coragem e abordei o senhor sem nome, que sempre era ativo e teatral e agora tão calado e à mercê do tempo, me deixou perturbado e imaginando o pior. Mas minhas aflições foram amenizadas, aos pouco, ele acordava, e em um mixto de serenidade e surpresa, o indigente folclórico olhou nos meus olhos e falou: Bom dia!
Eu respondi com indagações e com um pouco de inconveniência, querendo saber porque dormia, se sempre quando passava, estava falante e elétrico e etc. Ele respondeu com humor: que estava com sono. Fiquei estático mas não perdi a linha, e o senhor continuou com sua ladainha, irrepreensível falando sobre sua vida na rua, seus amores, suas ideias, mas sem nenhum lamento, nem arrependimento, e sempre bem humorado, perguntou-me porque eu tinha quebrado meu ritual diário, para estar conversando com um desconhecido.
Fiquei surpreso, ele me via todos os dias a passar na praça, sabia até o horário. Aquele morador de rua, na verdade, era um vigilante disfarçado, uma espécie de câmera antiga, que registrava tudo e nunca se quebrava. No final daquela conversa amistosa, ele agradeceu o café da manhã e falou que era um bom observador, os anos nas ruas lhe deram espertise para saber mais do que parecia, e elencou: o Sr é casado, pois usa aliança, sua rua é asfaltada, pois seus sapatos estão limpos, mora próximo, pois nunca está suado, corta os cabelos quinzenalmente e gosta de queijo e presunto.
Boquiaberto com tanta sabedoria, e com todas as assertivas de minha vida, percebi que a maioria dos acertos eram com base em um olhar atento e apurado, mas antes de ir para o trabalho, lhe perguntei, por que sabes que aprecio queijo e presunto?
E ele respondeu: essa foi fácil, ninguém vai oferecer algo que não goste. E fui embora com aquela imagem do senhor sem nome comendo um misto quente.
ADAILTON LIMA
Comentários
Há nas ruas tantos invisíveis sociais e é tão belo quando nos deparamos com obras que nos lembram os clássicos, eu me lembrei da pequena vendedora de fósforos de Hans Christian Andersen, cujo final trágico culmina com sua morte em uma rua gelada porque diferente do texto acima ninguém lhe deu atenção.
Keila Rackel Tavares | 07/09/2024 ás 05:46 Responder ComentáriosComovente sua crônica, poeta! Revela ser um "bom-samaritano"
Lorde Égamo | 07/09/2024 ás 10:42 Responder Comentários