O engenho da minha vida

Contos | Neiva Guarienti Pagno
Publicado em 16 de Setembro de 2022 ás 22h 41min

E o inverno novamente chegara. Aquele friozinho gostoso, o vento batendo no rosto, o aconchego dos cobertores.

Mas minha infância não foi só isso. Era regada de ofícios hibernais: escola no período matutino, trabalho árduo na roça no período vespertino. Embora o frio atrapalhasse um pouco, tínhamos que cumprir nossas obrigações diárias.

Em meio a tudo isso, tinha o engenho. Síntese de trabalho, mas encontro com os tios, tias, primos, primas e a minha avó, a matriarca da família. Põe parentada nisso, já que éramos muitos. 

Primeiro, ir com o pai na roça, cortar a cana-de-açúcar, carregar na carroça puxada a boi e voltar para casa. Já com a mãe, a tarefa era pelar, limpar a cana e deixá-la lisinha para moer. Todos faziam isso: cada tio com sua família colhia o montante de cana-de-açúcar que queria e depois a levava, já limpa, na casa da vó.

E todos seguiam o ritual. Todos os anos. Sempre no inverno. Era sagrado: uma semana do mês frio de julho a caminho do engenho.

A época era o período das férias da gurizada para aproveitá-la na lida. Uma semana por ano destinada ao engenho. O engenho da minha vida.

Trabalho árduo. Que nada!

Para mim e meus primos era a total diversão. Enquanto o engenho rodava, tocado à junta de bois, nada mecânico como acontece hoje, nós acompanhávamos o engenho: corríamos no ritmo do engenho, todo mundo querendo ficar no lugar do tio mais corajoso, aquele que tocava os bois, sem medo, sem medo nenhum.

E as tardes passavam, no compasso das passadas da junta de bois. E era tudo tão gostoso. O trabalho era uma brincadeira de infância.

As tias fofocavam junto da mãe. Os homens eram mais sérios, na labuta, no serviço pesado, no toque do boi para fazer moer a cana no engenho, na coleta da garapa docinha e do bagaço sendo juntado em montes que depois virariam adubo.

E nós, meninas e meninos, brincávamos como loucos, ralando de forma tão divertida, que nem parecia trabalho e sim um encontro animado de família. E só esperando alguém coletar a garapa para tomá-la na hora que saía do engenho. Hum...que delícia!

Depois a garapa ia para o tacho, que fervia com os paus de lenha embaixo. Ali só ficavam os mais experientes. Criança não podia ficar perto, nem pensar. Podia provocar acidente, dizia minha vó.

Era chegada a hora dos bois descansarem.

Depois de ferver e ferver e ferver a garapa, o caldo doce ia virando melado, o doce melado passado no pão. Quase pronto e o tacho era retirado do fogo. Novamente só os mais velhos faziam esse serviço: meu pai, meus tios.

Aí vinha aquela pá gigantesca para bater aquele caldo até engrossar um pouco e ficar branquinho, branquinho. Algumas mulheres se atreviam a bater, porque o braço cansava.

Bater e bater e bater. E o cheirinho adocicado do melado exalava no ar. E lá vinha minha avó com o pão. Oh, coisa inesquecível e deliciosa!

No entardecer, o friozinho de julho se apresentava novamente. Cada tio com sua família partia de volta para o lar. A noite se aproximava. Dia seguinte tinha mais lida, mais engenho, mais cana-de-açúcar, mais junta de boi, mais melado, mais parentada.

E assim passávamos uma semana do mês de julho. Com o frio, o doce da cana-de-açúcar, a família.

Hoje, revivo tudo isso na memória. Não tenho mais a avó do meu lado, alguns tios já se foram, alguns primos agora muito distantes vivem suas vidas, meu pai e minha mãe já não têm mais força para produzir o melado branquinho e doce. A tradição ficou só na mente e a família... Essa é para sempre.

Já não tenho mais idade para brincar. Mas o engenho ficou guardado na lembrança da minha vida, aquele que mesmo em períodos frios me ensinou que os dias podem ser calorosos, que mostrou a união em família, que me ensinou um trabalho árduo regado também de doçura.

O engenho não existe mais, permanecem apenas lembranças de momentos importantes ao lado de uma família, que até mesmo no encargo do engenho transmitiu amor, união e doçura.

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