O Diplomado

Uma multidão alegre e apressada caminhava pelas ruas coloridas da cidade, ao som de melodias religiosas, misturadas às frequências de ondas sonoras provenientes de diferentes batidas:  reflexo da pluralidade de um país imerso às cores e sons diversificados, que ainda não se descobriu de fato. Dezembro, aqui no andar de baixo é assim mesmo: um desfile de gente bonita e bem vestida pelas ruas do centro da cidade, objetivando agilizar as compras para o Natal que se aproxima, ou simplesmente dar um rolê pelas choperias na companhia de amigos, para beber, conversar e dar risadas.

. Nesse espírito, a primeira semana de dezembro anunciava um mundo novo; a começar pelo comércio com previsão de funcionamento das nove às vinte e duas horas até o natal; e, por extensão, a busca de um “Ano Novo”, esse momento nobre em que as pessoas renovam suas esperanças buscando resultados diferentes, mas fazendo coisas iguais.

Seguindo a crença popular, alunos e professores sentem essa transformação em seus espíritos e o final do ano letivo também passa a representar a renovação dos sonhos, diante da eterna busca das condições necessárias para a realização do idealizado “projeto de vida”; sem prejuízo, contudo, da vibração, alegria e o desejo de confraternização que  brota da alma coletiva como flores na primavera.

 Nessa atmosfera acolhedora e fraterna, a simpática escola Pública Plínio de Arruda Sampaio, abriu os portões como dois braços estendidos à comunidade local que, orgulhosa, via seus filhos se dirigirem àquela unidade para participar dos últimos dias de aulas com intensidade sempre demonstrada pelos mestres e profissionais da unidade escolar.

Mas a escola naquela segunda feira amanheceu diferente; as classes, na sua maioria, estavam compostas por oito a doze alunos, pois os demais haviam antecipado as férias, com exceção dos alunos do terceiro ano “B”; estes vieram todos para a escola, porque gostavam do ambiente aconchegante da unidade; e, por conta disso, sabiam que sentiriam saudades no futuro; mas indubitavelmente, todos sabiam que eles amavam as partidas de vôlei na quadra, tanto que a bola nas mãos de Christian Soares, o líder da turma, era quase a extensão de seu próprio corpo. A prática era conciliável, pois a escola, por sua vez, diante de suas condições: pequena, composta por seis salas de aulas, evocava uma relação harmônica entre alunos e professores, possibilitando bons índices de resultados no final do ano letivo.

Os termômetros mediam quarenta graus naquela segunda feira de dezembro, quando os três ventiladores do terceiro B” já estavam em funcionamento.  Christian Soares, sempre o primeiro a se achegar à sala de aula, guardou a bola de vôlei embaixo do suporte da TV, notando naquele momento algo que não se repetiu o ano todo: Adauto não estava na mureta da janela, aonde sempre o aguardava à espera de um  afago seguido de um petisco, para em seguida passar pela abertura da janela e seguir seu destino. Isso gerou uma preocupação enorme na turma, que saiu pelas cercanias à procurá-lo. Diante do exposto e da gravidade da situação a aula de Língua Portuguesa foi prejudicada.

Adauto não foi encontrado nem na horta e tampouco nas imediações da escola.

- Não é possível! Questionou a aluna Iriana: – Justo agora, no final do ano!

Os petiscos que traziam para agradá-lo foi deixado no chão da sala e na mureta da janela, mas nada.... Adauto não apareceu também nos dias seguintes, e não foi visto como normalmente acontecia passeando pelos muros da escola durante os intervalos para interagir com os alunos.

Adauto, na verdade, era um Saruê, que fora adotado pelos alunos do terceiro “B” quando ainda estavam início do ano letivo, num belo dia em que as meninas Ariana e Clarinha chegaram e o encontraram dormindo na sala de aula. “Com a passagem do tempo é assim, vai-se ficando folgado e acaba perdendo a hora”, disse Clarinha.  O animalzinho, a princípio, ficou assustado, mas depois foi se acostumando aos petiscos recebidos, e oficializando, assim, sua rotina, chegando toda noite à sala de aula em ocasião em que os alunos a deixavam, e se ausentando dela quando o líder da turma chegava. A cena era repetida cotidianamente: Adauto recebia petiscos e agrados, depois saía pela janela para seguir seu destino.

Seu próprio nome era um mistério: alguns diziam que João Pedro de Oliveira Ribeiro, aluno transferido para uma outra escola da região, havia dado ao animalzinho o nome de seu avô, inclusive o sobrenome era do próprio aluno transferido, mas havia ouras versões. O certo é que o líder da classe num belo dia disse que Adauto agora fazia parte da família, motivo pelo qual, colocou o nome dele, sorrateiramente, na lista de chamadas da escola; e, talvez por um lapso, e ninguém soube explicar como isso ocorreu,  Adauto de Oliveira Ribeiro foi registrado na Secretaria eletrônica e a partir de então ele passou a ser considerado aluno da escola. Os demais discentes respondiam a chamada por ele, e sempre que se pronunciava o nome: Adauto de Oliveira Ribeiro, ouvia-se: Presente.

Como o governo do Estado naquela ocasião, geria a Educação pelo princípio da quantidade e não qualidade; e para tanto considerava acima de tudo a presença em sala de aula e exercícios nas plataformas, os alunos em forma de revezamento, além das chamadas, passaram a fazer os exercícios das plataformas para o Adauto. Pelos motivos já sabidos, não havia provas bimestrais corrigidas em nome dele, mas a feitura dos exercícios nas plataformas, bem como a realização da prova Paulista e a presença em sala de aula era a garantia das aprovações bimestrais do então discente.

 Mas ..... naquele dia ele não apareceu....e tampouco nos dias seguintes...

- “Talvez tenha emendado as férias”, disse o aluno Romualdo,

- Mas Adauto não é disso, disse o líder Christian, ele tem mais frequência que você, cachorro – Todos riram.

A preocupação não prejudicou a formatura que estava prevista para a semana seguinte, e esta foi realizada numa noite inesquecível para todos, com discursos, homenagens e entregas de certificados; sequencialmente no instante em que foi anunciado ao microfone em bom tom o nome: Adauto de Oliveira Ribeiro, houve um momento de suspense, quando Christian Soares, o líder da turma, pediu permissão à mesa e tomando em suas mãos o diploma de Adauto, dirigiu-se à tribuna e prestou homenagem ao amigo ausente, declamando um belo poema:

 

           Ultimo desejo

Assim eu queria minha partida:

Sem pesares e sem lembranças intermináveis;

Mas que marcasse no silêncio

O mistério e a paixão de uma noite de estrelas,

E que restasse um vazio instantâneo nos corações amigos,

Preenchido em breve,

Por outros amigos que virão.

 

De pé, para a posteridade, a plateia em êxtase aplaudia o diplomado ausente, enquanto que as plataformas do governo estadual registrava o sucesso alcançado no combate à infrequência, desistência e evasão escolar.

Gilmair Ribeiro da Silva

gilmairribeiro15@gmail.com

Piracicaba-SP

Cel. 19.9 92401574

Professor de Língua Portuguesa da rede pública do Estado de São Paulo

Autor do Livro de poesias “Os muros e o silêncio da cidade”

Comentários

conto sensacional

Gabriel Abner | 13/02/2025 ás 19:56 Responder Comentários

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