O Diário da Professora

Contos | 2024/8 Antologia Vozes Literárias | Gilmair Ribeiro da Silva
Publicado em 18 de Agosto de 2024 ás 15h 19min

A professora Ariadne, licenciada em Geografia, iniciava o segundo ano de suas atividades na Escola Pública Olga Benário, sabendo, de antemão, que continuaria testada, diariamente, pelos alunos, e vista com desconfiança por parte dos professores mais velhos da casa. Mas a altivez da novata provinha do que havia de melhor na sua formação – como ela própria acostumava dizer: - “postura e compostura”, revelada nas argumentações embasadas, ações coletivas, pequenos gestos; e, sobretudo, um olhar atento de uma cronista, orientando a antevisão de situações cotidianas, e possibilitando a tomada de decisões, para firmar suas convicções e conquistar o respeito da maioria dos docentes.

Mas a sua alta e soberana vocação teria sido apagada pelo tempo como a fumaça que evapora no ar, não fosse, anos mais tarde, o acidental encontro de um diário que repousava na solidão da biblioteca da escola trazendo à público seus registros pessoais, dando conta de que o início do ano letivo nas Escolas Públicas tem a marca da contradição e do conflito. Polêmico como sua própria personalidade, os relatos dividem opiniões – uns afirmam tratar-se de ficção, já outros defendem a veracidade dos fatos narrados.

 Nele consta que a semana de planejamento na escola representa, explicitamente, a sociedade polarizada e dividida em que vivemos. Assim como os alunos que se dividem em tribos, os professores e gestores, também se dividem, inconscientemente, em grupos e subgrupos ideológicos ou não -  pedagógicos, sociológicos, quer nas discussões pertinentes ao ensino aprendizagem, ou mesmo nas conversas informais sobre práticas cotidianas e desenvolvimento social.

Segundo consta, os grupos são formados na primeira semana de aula,  estendendo-se por todo o ano letivo, da seguinte maneira: de um lado há sempre grupo formado por docentes jovens iniciantes e idealistas, cuja ansiedade está estampada no brilho aflito dos olhos e na tensão dos gestos, posto que, ainda um tanto tímidos percebem que são inseridos num universo totalmente diferente daquele que viram nas universidades, posto que, agora  apenas o conhecimento já não basta, diante do discurso de que “se tornarão gestores de grupos” e passarão a administrar costumes, hábitos, e até vaidades, para que suas aulas surtam efeitos satisfatórios. Isso os preocupa e, no das vezes, os deixam constrangidos durante o ano letivo.

Em outra esfera, não sem menor nível de agitação e intranquilidade alguns professores, efetivos ou não, preparavam-se para dar continuidade ao trabalho realizado no ano anterior; e, caso oriundos de outras unidades, dar início a um trabalho novo e eficaz: são os “neutros”, àqueles que pregam que na Escola Pública não se deve discutir política, como se isso fosse possível. Dentre eles, na manhã daquele início de fevereiro, encontrava-se a professora Berenice, de Ciências, exuberante no seu vestido longo, azul claro, combinando com sua altura. Ela tinha a voz aveludada e usava bem as expressões e procurava ter trânsito entre todos os grupos existentes. O discurso era o mesmo: “Neutra”. Ela ainda não havia sido apresentada ao linguista que ensina que: “neutralidade é a muleta dos covardes”.

Mas popular mesmo, era a Agente Escolar Lucélia; pela sua maneira “descolada” de se expressar, vestir e andar. As expressões diretas e sem rodeios a fez com que fosse admirada e respeitada pelos alunos, e apesar de sua pouca idade, 28 anos, seus xingamentos e palavrões eram entendidos pelos discentes e legitimados pelo grupo majoritário de professores que gostavam do trabalho que ela realizava, tendo em vista que, para essa parcela mais conservadora e “disciplinadora”, defensora, inclusive, das escolas cívico-militares; para estes, a garantia de um mínimo de disciplina compensava os arroubos verbais da agente, pois ela era a única profissional que “colocava ordem na casa” e garantia a presença dos alunos nas salas de aulas após intervalos e almoços.

 Nesse lado do pátio, próximo da entrada para a quadra de esportes, rolava a tese da disciplina com a padronização dos costumes justificando que, hoje, os alunos são inseridos num universo tecnológico de informações rápidas e descontextualizadas, substituindo a busca do conhecimento provindo da habilidade de leitura; onde o repertório indigente, inclusive, faz com que um único palavrão seja utilizado, no mais das vezes como metáfora, adjetivo, substantivo, verbo ou interjeição. “ Num mundo como esse, a disciplina na escola resolveria o problema da aprendizagem deficiente” - Afirmavam. Curiosamente, o olhar de cronista ativo da professora revelou que os integrantes desse grupo não eram dados a qualquer tipo de leitura! Por isso mesmo a origem da argumentação era o senso comum.

Em outra parte do pátio, contrapunha essa tese um grupo minoritário de professores, os chamados “progressistas” que em tom de crítica, diziam, entre si, que com o crescimento da extrema-direita no país, “a nova geração já começava a ocupar cargos públicos”. Sendo estes representados na pessoa de Lucélia.

A narrativa dos intervalos e horário de almoço mereceu um capítulo especial, pois, segundo consta, é nesses momentos em que antecedem as aulas que essas divisões se apresentam mais claramente: num tempo não muito distante, havia, nessa mesma escola, um grupo de professores “progressistas”; -  por eles próprios assim chamados. Estes eram sobretudo, amigos inseparáveis, que se reuniam, após as aulas para trocar livros e discutir política, literatura e educação.  Antes de serem professores, eram todos: leitores proficientes. Esse grupo era formado pelo poeta que habitava as partes baixas, pela professora "MM” de Matemática, pela professora “Z” de Língua Portuguesa, pelo professor “R” de Libras, pela professora “F” de Biologia, pelo professor J” de filosofia e pela professora “G” de Geografia.

Conforme a narrativa; eles, enfim, estavam voltando a se reunir naquele espaço para a realização de um sonho, e por isso mesmo, estavam todos felizes naquele dia, que “marcava o retorno para casa”, pois haviam deixado à escola há três anos, por intermédio de atribuição de aulas para se livrarem da incompetência e do autoritarismo, e até assédio, de uma gestão inoperante. Agora, acreditavam – “seria tudo diferente”, pois o poeta que habitava as partes baixas, cumprira sua promessa, ou seja, havia passado no concurso de diretor e ao assumir a unidade, convidara a todos que aproveitassem o processo de atribuição e retornassem para inaugurar uma nova gestão pautada na democracia direta – expressão viva do grupo. O clima era de comemoração.

Brincou a professora de Geografia:

- A “Comuna transante está de volta” e completou:

- A escola tem que ser e será, para mim, sempre o lugar do debate público, repetindo o que dissera há três anos, entre cafezinhos num canto do pátio, quando decidira deixar a escola em busca de uma nova perspectiva.

- Isso me cansa: é triste ter que defender o que deveria ser básico numa escola pública: -  o foro de debates, onde se deveria elaborar teses e apresentar argumentação convincente e embasada - o ataque admitido é o das ideias e não de pessoas, disse a professora de biologia, completando na sequência: Resistiremos!

- Acredito que estamos num final de ciclo, onde se chega no caos, e de lá nasce uma nova perspectiva, emergiremos do fundo do poço para uma outra sociedade, por isso entendo ser importante o nosso papel nesse momento, em combate a extrema direita que domina as escolas. Recorrendo a história poderemos entender isso. Foi a fala do professor de Libras.

A professora de Língua Portuguesa, culta, competente e sempre elegante, exibia seus belos olhos claros, e sempre equipada por bolsas bonitas, foi logo rodeada por meninas que gostavam de imitá-la, e entre cumprimentos e boas vindas, relembrou histórias memoráveis:

 - como o dia seguinte à uma eleição no passado, quando encomendaram camisetas com inscrição na parte da frente: “Perdeu, mané” completando na parte de trás: “não amole” e no final das aulas, ao sair da escola, utilizaram em grupo tais vestimentas para passar no meio de um grupo denominado patriotários que, acampados defronte ao Tiro de Guerra, cantavam o Hino Nacional”. A tamanha ousadia resultou em insultos: “Vai pra Cuba”, “Vagabundos”, “doutrinadores de adolescentes indefesos”. Se o choro é livre, o riso e o deboche era a expressão da felicidade naquele dia já distante.

Com a ponderação que lhe era peculiar, a menina professora de matemática, que, segundo o poeta que habitava as partes baixas, tinha as mãozinhas fidalgas e os pezinhos aristocráticos, levantou teses e aspirações futuras, seguida pela professora de Geografia que completou:

- Com a invasão da extrema-direita às Escolas Públicas, não dá mais para discutir de maneira geral política e sociedade na sala dos professores, pois quando apresento uma tese com embasamento, busco destacar Machado, Graciliano, Dostoivski, Backtin, Chominski, logo, alguém tenta me rebater citando um vídeo do Zé qualquer, vocês acreditam que esses caras confundem fatos com opinião e ainda querem ensinar os outros?

 Complementou o professor de Libras:

- Gravíssimo tanto quanto, é o fato de confundirem liberdade de expressão com crime; por exemplo: um professor negacionista, de repente, numa roda de amigos, talvez  num churrasco, depois de ter bebido consideravelmente, pode acabar falando besteiras, e para agradar amigos dizer que acredita que a terra é plana; saindo de um professor de geografia isso seria uma cretinice, mas ainda assim é liberdade de expressão, mas esse mesmo professor, na segunda feira na sala de aula dizer isso aos seus alunos, ai ele estaria cometendo irregularidade grave, pois ele em razão do cargo, recebendo dinheiro público, tenta formar opinião com base em algo sabidamente falso. Nesse caso, deve ser investigado e instaurado processo administrativo, essa é uma questão que esses caras, por falta de boas leituras, não sabem diferenciar.

O poeta que habitava as partes baixas nada disse; safo que era, ouvia tudo e recolhia material para depois fundamentar sua escrita.

O pátio estava lotado de alunos, era um festival de vestes e cores naquele calor escaldante: falavam alto, corriam, todos sempre com seus celulares em uso, muitos com fone de ouvido. Esse momento é muito engraçado, pois aqueles alunos que fazem de tudo para sair da sala de aula a todo instante, ou afrontam professores, são normalmente os primeiros a dizer que sentiram saudades da escola, e, logo, procuraram os professores demonstrando toda a carência afetiva, até então não revelada.

Num desses momentos de descontração uma menininha do sexto ano, deixou o grupo de meninas de onde estava, e correu em direção a professora Berenice; e tocando-a por trás, disse entusiasmada, como fosse a coisa mais importante do mundo:

- Professora... professora..., deixa eu te dizer uma coisa...

Diga, respondeu a professora

- Descobri que minha mãe foi sua aluna!

A professora, no equilíbrio de seus belos saltos, virou-se calmamente e interagiu: que bom! A menina correu de volta ao pátio

Mas virando-se aos demais a professora Berenice disse baixinho:

- Pestinha, isso é coisa de dizer num momento como esse!

Um professor de matemática do grupo, que tinha ouvidos atentos a alertou:

- Poderia ser pior – ela tem avó!

Ato contínuo, um menino de cabelos vermelhos, do sétimo ano, aproximou-se da mesma professora e perguntou:

- Pro o que é orifício rugoso?

A professora Berenice respondeu:

- É o ânus!

O menino se preparava para a retirada, mas não convencido, virou novamente e perguntou:

- Mas o que é ânus, pro?

A professora ficou um tanto confusa, mas foi salva pela intervenção da Agente Escolar Lucélia que, de pronto, respondeu:

- É o cuzinho, querido!

Ah! Entendi, respondeu o menino e saiu correndo pelo pátio

Ato contínuo, Lucélia, em substituição ao sinal estridente, imitador das fábricas dos anos 1950, pôs se gritar e exigir que os alunos se dirigissem às salas de aulas: - Deu a hora!  Vamooooos!

As plataformas do governo registraram: - protagonismo juvenil!

 

(Gilmair Ribeiro da Silva, Piracicaba-SP)

 

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