O Corpo que Canta e Sangra (crônica do filme: Homem com H)

Crônicas | Carlos Onkowe
Publicado em 24 de Junho de 2025 ás 12h 49min

Há quem diga que arte é um lugar neutro, uma espécie de santuário intocado, onde a estética flutua acima das misérias do mundo, como se fosse possível criar sem tocar, pintar sem sujar as mãos, cantar sem sentir na garganta a poeira da estrada. Esses são os que ainda acreditam na tal da "arte pela arte" — conceito pomposo, mas tão frágil quanto um cristal que não suporta a luz do sol. Basta um feixe real, vindo do corpo de Ney Matogrosso, para fazer estilhaçar a vitrine.

 

"Homem com H" não é só um drama musical biográfico. É um espelho quebrado, onde cada caco devolve ao espectador um pedaço da verdade que muitos preferem não ver: a arte, quando é arte de verdade, é sempre política. Não falo de panfletagem, mas de presença. E Ney é pura presença. Não se esconde em molduras douradas, nem se curva aos códigos do silêncio respeitável. Ele explode, sem pedir licença, com o peito nu e a alma exposta. Não canta para entreter. Ele canta como quem resiste. Dança como quem desafia. Maquia-se como quem reconstrói o próprio rosto diante da sociedade que tenta apagá-lo.

 

Na pele de Ney, a arte não apenas se encarna — ela se incendeia. No auge da ditadura, quando o país era um imenso quarto escuro vigiado por olhos autoritários, ele vestia-se de brilho e sombra, flertava com o sagrado e o profano, e colocava no palco um corpo que dizia: “estou vivo, apesar de vocês”. Isso não é militância identitária, é estética radical, é poética do enfrentamento. A arte, nesse corpo, não é ornamento — é faca, é flor, é grito. É gozo como política.

 

É curioso pensar como alguns, ainda hoje, se incomodam com o que chamam de “lugar de fala”. Como se fosse censura, como se fosse um veto ao talento. Mas, veja bem: não é que alguém tenha que se calar — é só que agora mais vozes estão falando. Não é uma disputa de silêncios, mas uma ampliação da escuta. Ney, em toda a sua trajetória, nunca pediu para falar por ninguém — ele foi falado pelos olhares que o julgavam, mas respondeu com performance. Subverteu o olhar e devolveu desejo. Em sua boca, a canção era também discurso. No seu corpo, o movimento era protesto. No documentário, isso tudo está ali — nu, cru e luminoso.

 

E então vem o incômodo. “Estão politizando tudo”, dizem. Como se não fosse político calar alguém. Como se não fosse político escolher quem tem direito à biografia, quem pode ser herói, quem pode ser lembrado com beleza. “Homem com H” não é um panfleto — é uma reparação. E reparações não pedem desculpas.

 

Ney não se encaixa. Ele estilhaça molduras. E ao fazê-lo, nos ensina que o sublime pode estar no exagero, o sagrado na performance, a resistência no gesto mais aparentemente banal — como dançar de olhos fechados, como gozar publicamente, como cantar de dentro da ferida. Porque há corpos que não podem cantar sem que isso seja também um ato político. Ney é um desses corpos.

 

É impossível calar a arte, porque toda vez que tentaram calar, alguém como Ney dançou sobre os escombros.

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