O acendedor da fogueira
Contos | Arraiá das letras - Família Literária 2025 | Isolti CossetinPublicado em 29 de Junho de 2025 ás 13h 01min
O acendedor da fogueira
Dizem que foi numa noite de São João, daquelas de lua cheia bem alta e vento quieto demais que este fato aconteceu. O céu estava limpo, sem uma nuvem e os balões subiam como orações coloridas, acendendo a escuridão do sertão.
A festa na vila de Pedra Seca acontecia sempre no terreiro grande, entre a igrejinha e a casa do coronel. Tinha quadrilha, milho verde, licor doce, bandeirinha no varal e sanfona que não se calava. Mas naquele ano, o povo dançava mais devagar, com o olhar voltado pro alto da serra, onde ninguém mais ousava subir desde que o velho Zé do Capote desapareceu, três anos antes, justo na noite de São João.
Ele era o acendedor da fogueira da vila. Nunca falhava. Mas naquela noite, sumiu sem deixar rastro. Uns diziam que foi cobra grande. Outros, que foi castigo por ter mexido com coisa que não devia. Mas os mais antigos murmuravam em voz baixa: “Foi o fogo que o levou”.
Desde então, ninguém mais queria acender a fogueira. Tentaram, no ano seguinte, e a lenha não pegava. Mesmo seca, mesmo com querosene. O padre disse que era sinal de que a fé do povo estava fraca. Mas o povo sabia: era o lugar, era a noite, era o silêncio que pesava na alma.
Foi quando, naquele São João, apareceu uma moça que ninguém conhecia. Vestido vermelho, cabelos trançados, olhos da cor do rio seco ao entardecer. Chegou como quem vinha de longe, mas sem poeira nos pés. Sorriu para todos, mas ninguém lembrava de tê-la visto chegar.
— Cadê a fogueira? — perguntou, com voz de vento miúdo.
O povo se entreolhou, desconversou. Até que o menino Chico, que não tinha medo nem de sombra, respondeu:
— Aqui não se acende mais não, moça. Fogo aqui... é coisa que não pega mais.
A moça olhou pro céu, como quem ouvia segredo de estrela. Depois caminhou até o centro do terreiro e disse, firme:
— Pois hoje pega. E pega por bem.
A madeira já estava empilhada, como se esperasse por ela. Ninguém se mexia. Até o som da sanfona parou, como se o vento tivesse dado um nó no fole. Então, sem fósforo, sem isqueiro, sem brasa de lamparina, a moça soprou nas mãos e a fogueira acendeu.
Fogo alto, forte, dançante. Mas estranho. Tinha um cheiro de flor que ninguém conhecia. E no meio das chamas, dizem que viram o vulto de Zé do Capote sorrindo com o chapéu na mão e os olhos brilhando como carvão em brasa.
A moça girou uma vez ao redor do fogo e disse:
— Agora sim, ele pode descansar. Fogo vivo, promessa cumprida.
Quando olharam de novo, ela já não estava mais lá.
Desde então, a fogueira de Pedra Seca nunca mais deixou de acender. Ninguém mais tentou entender o que houve. Apenas rezam, cantam, dançam e deixam sempre uma cadeira vazia perto da fogueira, com um copo de licor e um lenço vermelho sobre o assento.
Só por respeito...
Ou por medo...
Ou porque, no sertão, certas coisas não se perguntam, apenas se guardam como se guarda segredo de alma e brasa acesa.
Comentários
Belo conto! Parabéns!
Lorde Égamo | 29/06/2025 ás 13:57 Responder Comentários