Nem Tudo se Colhe
Crônicas | 2025 - OUTUBRO - Sussurros da noite: contos e poemas de mistérios | Rose CorreiaPublicado em 23 de Junho de 2025 ás 09h 35min
Nem Tudo se Colhe
Ela andava entre canteiros de silêncio, onde o vento sussurrava segredos antigos. Os pés pisavam com leveza, mas os olhos, curiosos, brilhavam como quem busca o que não sabe. Havia ali flores raras — firmes, intensas, ocultas sob a terra como se guardassem algo maior do que cor.
Com as mãos nuas, colheu a primeira muda. Mas ao puxar a raiz, não encontrou bulbo, nem caule — encontrou um rosto. Humano. Quieto. Com traços serenos, como se dormisse no ventre da terra.
Assustada, recuou, mas a estranheza não venceu a curiosidade. Colheu a segunda. Outro rosto. E depois a terceira. Três cabeças humanas, intactas, envoltas por raízes finas como cabelos.
Então, o tempo parou. De uma sombra antiga surgiu um velho de olhos profundos, que não trazia raiva, nem medo — apenas a sabedoria do que sempre foi. Ele apontou para as flores que jaziam agora ao seu lado, desfeitas em seu mistério.
— Essas flores não são do chão — disse ele, com a voz de trovão calmo. — São do Deus do céu. Só florescem para quem sabe ver sem tocar, sentir sem arrancar.
Ela abaixou os olhos, tomada pelo arrependimento. Mas o velho se aproximou e, com mãos suaves, lhe entregou um ramalhete. As flores eram diferentes: etéreas, leves como névoa colorida, e exalavam um perfume que parecia cantar.
— Estas são para ti — disse ele. — Foram colhidas com olhos, não com mãos. Não murcham, porque nascem da compreensão.
Ela segurou o buquê com reverência. E ali, entre flores e silêncios, entendeu: algumas belezas não se arrancam, mas se recebem. Algumas dádivas não se buscam — se revelam.
Saiu com as mãos cheias de mistério e o coração fecundado por um novo tipo de flor: aquela que brota do respeito.
Comentários
Que lindo Rose. Parabéns
Josivaldo Constantino dos Santos | 25/06/2025 ás 09:47 Responder Comentários