MEMÓRIAS DE UM SAPATO

Contos | Isolti Cossetin
Publicado em 22 de Abril de 2024 ás 19h 28min

                                           MEMÓRIAS DE SAPATO

                     Abandonado à própria sorte, rolando de lá pra cá, de cá pra lá, é este o meu viver há muitos meses. Estou velho, enrugado, rasgado, furado. Não sirvo para mais nada e vivo só, muito só, pois perdi dois grandes companheiros num único dia.

E pensar que um dia fui novidade, lançamento, a sensação do momento. Fui procurado, desejado, disputado. Lembro-me bem. Estava exposto numa vitrine de uma famosa loja. Todos passavam, olhavam para mim, entravam e me provavam. Desejavam-me, mas nem todos tinham dinheiro suficiente para me comprar.

Os dias passavam e nada de alguém me levar. Então, numa manhã de sábado, apareceu um belo jovem. Devia ter uns vinte anos mais ou menos. Ele era rico. Era filho de doutor. Comprou-me e me levou para sua casa. Fiquei todo feliz. Finalmente eu, o pé esquerdo e meu parceiro, o pé direito, teríamos um dono. Finalmente, teria alguém para me cuidar, me fazer companhia.

No início tudo ia muito bem. Recebia todos os cuidados. Eu era lavado, engraxado, lustrado. Meu dono me levava a lugares tão bonitos e especiais, mas eu mais gostava de ir à igreja, à universidade e ao cartório, que era o local onde trabalhava.

Seus amigos sempre diziam que ele era um cara de sorte, pois calçava um belo par de sapatos e eu, claro, ficava todo orgulhoso.

De repente, de uma hora para outra eu senti que alguma coisa começava a mudar. Meu dono quase nem me notava. Calçava-me de qualquer jeito, às vezes, me deixava jogado num canto qualquer. Aos poucos ele deixou de ir à igreja, às aulas ele não frequentava e no trabalho, constantemente faltava. Passava as noites em claro, fumando e bebendo. Seus amigos já não eram mais os mesmos de antes. Agora ficava em companhia de pessoas estranhas e não gostava de ficar em casa com sua família. Eu me sentia no dever de fazer alguma coisa, mas a cada dia eu ia enfraquecendo, ficando gasto, velho, cansado e triste, muito triste, porque eu não conseguia entender o que estava acontecendo com meu jovem dono.

Então, uma noite, aconteceu algo muito triste. Meu dono estava se arrumando para sair, quando sua mãe pediu-lhe que ficasse, que não saísse, pois precisavam conversar. No entanto, ele virou-lhe as costas, tropeçou em mim, calçou-me de qualquer jeito e saiu do quarto, batendo fortemente a porta. Ainda pude ouvir os soluços de sua querida mãe. Estranhei ainda mais aquela situação porque ele saiu a pé. Andou muitos quarteirões. Eu já estava sem forças, mas ele parecia não sentir cansaço algum. Finalmente entrou num bar. Pediu cigarro e bebida. Sozinho, ele fumava, bebia e chorava. Às vezes cerrava os punhos e, batendo na mesa, dizia: “Deus, meu Deus, me ajude.” Eu não compreendia nada, não sabia o que ele estava passando, mas lembro que ele bebeu demais e perdeu a noção de quem ele era e começou a xingar todos que passavam por ele. O dono do bar pediu que ele saísse, que fosse embora. Claro que ele se recusou a fazer isso!  Foi quando entrou no bar um grupo de quatro ou cinco rapazes, não me recordo bem. Assim que entraram, vi que eles eram a cara da mais pura encreca. E não deu outra. Um deles começou a falar coisas que eu não entendia. Ele dizia: “Olhem só, o filhinho de papai. Quem diria, bêbado! Completamente bêbado!” Meu dono ficou nervoso, descontrolado e pediu para que o outro se calasse, mas que nada! Ele continuou, escolhendo ainda melhor suas palavras: “O papaizinho foi embora, foi? Abandonou o garotinho...” Meu dono não deixou ele terminar a frase. Levantou-se e gritou para que o outro calasse a boca. Foi aí que o pior aconteceu. Dois dos rapazes seguravam meu dono e o que falava, batia. Deram uma surra muito grande nele que, não suportando mais os golpes, caiu desfalecido no chão. Durante a briga, conforme recebia os socos, chutes e pontapés, eu acabei caindo do seu pé e fui parar debaixo de uma mesa. De lá pude ver a movimentação. Assim que as sirenes soaram, os rapazes fugiram e vi meu dono agonizando no chão. Seus olhos procuravam algo ou alguém, não conseguia compreender o que ou quem poderia ser. Carregaram meu dono numa maca e o colocaram numa ambulância. A polícia apareceu algumas horas depois e ouvi quando um policial disse que não havia mais nada para fazer ali, que aquilo era só mais uma briga de bar. Eu passei a noite ali, sozinho a pensar e comecei a compreender o que havia acontecido. Entendi que os pais do meu amado dono haviam se separado e era por isso que ele mudou tanto e ficou tão triste, confuso e desorientado.

Assim que amanheceu, o bar foi reaberto e a faxineira veio cuidar da limpeza. Tudo que era lixo, ela foi jogando dentro de uma saco plástico      preto. Eu queria correr, fugir dali, mas como? Eu estava sozinho e perdido. Não teve outro jeito. Chegou a minha vez.  Ela me ajuntou do chão, deu uma olhadinha, fez cara de pouca importância e me jogou dentro do saco de lixo e, em seguida, atirou-o dentro de uma lata escura, suja e que cheirava muito mal.

Fiquei muito assustado. Queria meu dono e o meu parceiro, o pé direito, mas não havia ninguém para me ajudar e para piorar ainda mais a minha situação, comecei a ouvir miados e latidos bem próximos à lata onde eu me encontrava. Em seguida senti que eu estava sendo tocado por algo. Pensei em pular, correr, saltar, mas nada consegui fazer. O saco no qual eu me encontrava foi rasgado e, para meu alívio, vi em minha frente a figura de um homem. Seu semblante era triste. Barba e cabelos compridos, olhar sem brilho. Ele me examinou por alguns segundos. Então, calçou-me em seu pé e eu coube certinho. Como não encontrou o outro pé, jogou-me dentro de uma sacola junto com outros objetos e me levou consigo.

Ao chegar em sua casa, tirou-me da sacola e me comparou com outros tantos pés de sapatos que lá estavam, mas nenhum deles era o meu par. Meio irritado, atirou-me a um canto e, desde então, vivo rolando sem rumo, sem direção, apenas com as minhas memórias, com a saudade do meu primeiro dono e com a minha solidão.

 

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