Lições para uma vida inteira

Contos | 2025 - MAIO - Laços de família: Histórias de amor e conexão | Neiva Guarienti Pagno
Publicado em 29 de Maio de 2025 ás 20h 45min

Vivi minha infância inteira na roça. Cresci trabalhando com a enxada, cortando pasto para o gado, dando milho para as galinhas, tirando leite de vaca, apartando bezerro. Comia fruta tirada do pé, descansava à sombra das laranjeiras, brincava com pedaço de pau, nadava na sanga, brincava até o escurecer, admirava o pôr-do-sol.

O mais importante de tudo foi ter passado todo esse período ao lado dos meus pais e, inesquecivelmente, juntinho das minhas avós, tanto materna quanto paterna. Os avôs... Uma dor que aperta o peito e dá aquela vontade de chorar... Os avôs eu nem conheci. Já haviam ido embora dessa terra. 

Mas as avós fizeram parte da minha infância. 

Com a minha avó materna aprendi a costurar, tricotar, cozinhar. 

Com minha avó paterna, tão pequenininha, tão meiga, tão doce, mas forte, corajosa, guerreira é que conheci os principais valores da vida: paciência, amor, carinho, respeito, firmeza, confiança e gratidão. 

Certa vez, lá no pasto onde meu pai criava gado, um bezerro ainda pequeno foi machucado por um boi grandão. Mas não foi só um pouquinho não. O touro feriu o pobre animalzinho com seus chifres enormes e pontudos, quase arrancando seu intestino para fora.

O bezerro já estava praticamente morto quando um vizinho nos avisou sobre o acontecido. Estávamos em casa somente minha avó e eu. Então fomos até o pasto, que ficava há uns dois quilômetros de casa.

Chegando lá, não acreditamos no que nossos olhos viam: o bezerro estava deitado no chão, todo sujo de sangue, todo machucado, mas ainda vivia. Comecei a chorar. Minha avó, com a sabedoria que a vida lhe ensinou, me tranquilizou dizendo:

−Calma, minha filha! Seja paciente! Não se preocupe, pois ele irá ficar bem. 

Eu fui me acalmando e acreditei nas palavras de minha vó. Afinal, ela nunca mentia.

Levantamos o animalzinho frágil e muito fraco. Demos-lhe um pouco de água, amarramos uma corda no seu pescoço e fomos seguindo a pé até nossa casa. 

Foi um longo caminho. Talvez uma hora ou duas, pois o bezerro andava devagar, cambaleava, mas seguia conosco. Parecia que ele também confiava em minha avó, assim como eu.

De vez em quando, observava a expressão de minha vozinha. Ela seguia firme e forte, puxando aquele animal quase morto.

Quando chegamos em casa, ela alojou-o no curral. Disse-me:

−Devemos tratá-lo com amor. Aí ele ficará bom logo, logo. Não deixe faltar água, milho, pasto. Mas precisamos também curar seus ferimentos.

A partir daquele dia, eu ficava a maior parte do tempo ao lado do Ferido. Foi esse o nome que escolhi para ele, uma junção de Fé com Querido. E não lhe deixava faltar nada: nem comida, nem água, nem curativos, fazendo como minha avó me ensinara.

De vez em quando aparecia um vizinho ou um primo ou um amigo para “visitá-lo” e sussurrava: “Esse bicho não sobrevive”. Eu não dizia nada e chorava baixinho. Minha vó percebia e me ensinava:

−Alguma vez a vó mentiu para você? Com carinho e cuidados, ele irá melhorar.

E eu pensava: “Minha avó sempre com as palavras certas na hora certa”. 

Os dias foram passando, Ferido foi ficando melhor, já comia e bebia sozinho, os ferimentos começavam a cicatrizar. De vez em quando o levávamos até um gramado verdinho, que ficava perto de casa, para ele pastar um pouco.

Ferido crescia forte, mas amoroso. Minha avó ao meu lado me doutrinava:

−Trate os animais com respeito, que eles serão verdadeiros amigos. 

−Pode deixar, vó – eu respondia, pois sabia que ela dizia a verdade.

E realmente Ferido se curou. Ficou um boi enorme, bonito, mas carinhoso comigo e com minha vozinha.

Então, certo dia, ouvi meu pai dizendo a minha mãe que matariam o Ferido, pois o Natal se aproximava e a parentada viria lá para casa festejar essa data. Saí desesperada correndo contar tudo a minha vó.

−Seja firme, minha neta. Na vida, nem tudo é fácil. Mas eu vou dar um jeito. Você confia? 

−Sim, vó. Eu sempre confio na senhora – respondi.

Minha abençoada vó conversou com meu pai, explicou-lhe do meu carinho por Ferido. Meu pai percebeu que Ferido era meu amigo e que eu ficaria imensamente triste, caso algo ruim lhe acontecesse. Então desistiu da ideia de matá-lo. Ferido ficou conosco até o dia em que morreu de velhinho.

E assim foram muitos os ensinamentos de minha vó, que hoje não está mais ao meu lado, pois foi embora dessa terra, assim como o Ferido.

Mas dentro do meu coração, a sua lembrança, as suas palavras, os seus princípios me conduzem por onde quer que eu vá. Sei que ela ainda me acompanha e olha por mim. Sou eternamente grata àquela que me ensinou lições para uma vida inteira.

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