Janeiro Branco: A Página em Branco que Gritava por Dentro
Contos | Amanda MazzeiPublicado em 22 de Dezembro de 2025 ás 16h 19min
Janeiro Branco: A Página em Branco que Gritava por Dentro
O calendário marcava janeiro, mas dentro de Helena ainda era inverno.
O ano havia virado, os fogos haviam colorido o céu, as promessas tinham sido escritas em papéis perfumados e guardadas em agendas novas. Do lado de fora, tudo parecia recomeço. Do lado de dentro, porém, algo permanecia pesado, silencioso e cansado demais para festejar.
Helena aprendeu cedo a sorrir sem sentir. Aprendeu que chorar era sinal de fraqueza, que pedir ajuda era exagero e que falar sobre o que doía era “drama”. Cresceu colecionando frases prontas:
— “Isso passa.”
— “Tem gente pior.”
— “Você é forte.”
E ela foi. Forte demais. Forte a ponto de ignorar os sinais do próprio corpo, da própria mente, da própria alma.
O cansaço virou rotina. A ansiedade passou a ser companhia diária. O sono não vinha, e quando vinha, não descansava. O espelho refletia alguém que existia, mas não vivia. Ainda assim, ninguém percebia. Helena trabalhava, cumpria prazos, cuidava dos outros. Afinal, quem cuida de tudo não pode desmoronar, certo?
Errado.
Naquela manhã de janeiro, o céu estava branco, encoberto, sem sol. O tipo de branco que não ilumina, apenas silencia. Helena sentou-se na cama e sentiu algo diferente: não era tristeza, nem raiva. Era vazio. Um vazio que gritava.
Ela tentou levantar, mas o corpo pesava. Tentou respirar fundo, mas o ar parecia curto. Tentou pensar positivo, como sempre disseram, mas os pensamentos corriam em círculos, cansados, confusos.
Foi então que viu o calendário pendurado na parede. Janeiro. O primeiro mês. A primeira página. Um branco quase provocador.
Lembrou-se de algo que ouvira no rádio dias antes:
Janeiro Branco. Quem cuida da mente, cuida da vida.
A frase ecoou diferente daquela vez. Não como slogan. Como convite.
Helena percebeu que sempre cuidara da vida dos outros, mas nunca da própria mente. Cuidava do corpo quando adoecia, tomava remédios, fazia exames. Mas quando a dor era invisível, ela a escondia. Quando o sofrimento não sangrava, ela o ignorava.
Naquele dia, pela primeira vez, ela não fingiu.
Pegou uma folha em branco. Não para escrever metas, mas verdades. As palavras saíram trêmulas, desalinhadas, honestas demais:
“Eu estou cansada.”
“Eu sinto medo sem motivo.”
“Eu não estou bem.”
“Eu preciso de ajuda.”
Chorou. Chorou como quem abre uma represa antiga. Não foi bonito, não foi silencioso, não foi controlado. Foi libertador.
Dias depois, Helena atravessou uma porta que sempre evitara: a do consultório de uma psicóloga. O coração acelerado, as mãos suadas, a cabeça cheia de dúvidas. Achava que seria julgada. Não foi. Achava que seria fraca. Descobriu-se humana.
Ali, aprendeu que saúde mental não é ausência de problemas, mas presença de cuidado. Aprendeu que emoções não são inimigas, são mensagens. Que falar salva. Que silêncio adoece. Que pedir ajuda é um ato de coragem.
O processo não foi rápido. Nem linear. Houve dias bons, dias difíceis, dias em que tudo parecia voltar. Mas, agora, Helena tinha ferramentas. Tinha escuta. Tinha acolhimento. Tinha consciência.
O branco de janeiro deixou de ser vazio e passou a ser possibilidade.
Ela começou a se tratar como tratava os outros: com paciência, respeito e empatia. Aprendeu a dizer “não” sem culpa. A descansar sem se justificar. A sentir sem se punir.
E, pouco a pouco, a vida voltou a ter cor.
Hoje, Helena ainda tem dias nublados. Ainda sente medo, ansiedade, tristeza. Mas agora ela sabe: isso não a define. Ela sabe que cuidar da mente é cuidar da vida que pulsa, insiste e merece continuar.
Janeiro segue sendo apenas um mês no calendário, mas o Janeiro Branco tornou-se um lembrete permanente:
a vida não recomeça quando o ano vira,
ela recomeça quando escolhemos nos cuidar.
E se você, que lê esta história, sente que algo dentro de você também está gritando em silêncio, saiba: você não está sozinho. Existe ajuda. Existe caminho. Existe cuidado.
Porque quem cuida da mente, cuida da vida.
E toda vida merece ser vivida com presença, dignidade e esperança.