Gaia

Contos | Romeu Donatti
Publicado em 11 de Junho de 2024 ás 20h 08min

O sol preguiçoso espreitava na janela. Aos poucos invadia o quarto com seus raios luminosos. A preguiça também se traduzia em meus movimentos lentos. Busquei o celular, eram 7:00. Levantei-me e fui ao banheiro. Era domingo de manhã. Os domingos suplicam por mais leveza e menos agitação.

Passeei pela casa, dirigi-me até a cozinha para fazer o café. Pus a água, o açúcar e o pó de café na cafeteira italiana e levei-a ao fogo. Enquanto aguardava o processo, lembrei-me de ir até a sala de estar buscar o livro que estava lendo no dia anterior – Hibisco Roxo de Chimamanda Adichie – para retomar a leitura. Ao chegar à sala, percebi uma porta da estante entreaberta. Abri-a totalmente e vi um álbum de família. A paisagem da capa, uma imagem rural, fez-me pensar na infância e decidi revisitá-lo.

Sentei-me no sofá. Pus uma almofada em meu colo e em seguida acomodei o álbum sobre ela. Abri-o. A primeira foto datava de 1984, ano em que chegamos a Sinop, deixando nossa cidade natal no Rio Grande do Sul em busca de melhores dias para nossa família, em terras mato-grossenses. Era uma foto pequena, em um formato que hoje já não produzem mais. Nela via-se um adolescente (meu irmão) plantando algo no quintal. Remoendo as lembranças, dei-me conta ao analisar o local, que se tratava de uma mangueira; existente na casa de minha mãe até hoje.

Lembrei-me do café no fogão. Já deveria estar pronto. Fui depressa averiguar. Recém começara a ferver. O aroma inconfundível do café circulava por toda parte. Servi-me de uma farta xícara. Voltei imediatamente para o sofá, para o álbum, para meu emaranhado de recordações.

Ao folhear aquelas páginas, inúmeras memórias foram trazidas à tona. Cada foto uma história, cada registro uma rememoração. Um turbilhão de emoções emergiu daquelas fotografias. Vi minha infância, adolescência e outros momentos marcantes de nossa família desfilarem diante de meus olhos como em um flashback de um filme hollywoodiano antigo. E a cada nova imagem uma explosão de sentimentos misturava-se ao café fumegante liberando emoções, inutilmente, reprimidas.

Todos os personagens contidos naquelas fotografias eram reais e familiares, bem como, os lugares capturados pelas lentes de máquinas fotográficas e celulares distintos. Uma profusão de momentos, locais, pessoas, paisagens, memórias, fragmentos de vida.

No entanto, ao chegar na última foto guardada naquele álbum, algo me chamou a atenção por conta de uma particularidade: novamente, lá estava a mangueira, frondosa, onipresente, verde, vívida, acolhedora. Debaixo de sua sombra, minha mãe sentada em sua cadeira de fios favorita saboreava seu chimarrão. Naquele instante, constatei que aquela frondosa mangueira nunca fora um personagem secundário, coadjuvante em nossas vidas; contrariamente, sempre estivera lá, como protagonista, tal qual uma mãe zelosa o faz, nos guardando e participando ativamente de tantas ocasiões significativas.

Servira à toda a família; embelezando o quintal, proporcionando sombra fresca e frutos deliciosos, prestando-se de pilastra para as quadras de vôlei improvisadas amparando as cordas abraçadas em seu generoso tronco, refrescando carros estacionados sob sua gigantesca silhueta e testemunhando inúmeros episódios memoráveis junto de si.

Revi todas as fotografias desde o início e percebi o quanto aquela mangueira era importante e demarcava, sensivelmente, cada lembrança. Vi meu saudoso pai, meus irmãos, sobrinhos, amigos, aniversários, incontáveis jogos de canastra, cheiros, cores e sabores capturados nas imagens.

Não me contive. Sozinho, chorei e solucei, nostálgico. Sorvi meu último gole de café. Lembrei-me de minhas aulas de História, do encantamento ao ler e descortinar o universo da mitologia grega. Recordei-me de Gaia, a Mãe-Terra, sua força, sua fibra, elemento primitivo e de potencialidade geradora ímpar. Naquele momento, batizei, carinhosamente, nossa mangueira de Gaia.

Naquela manhã de domingo, o sol, o café e Gaia, aqueceram meu coração, sobremaneira.

Livro: O que quero da vida

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