Os passos de Jaguá, a imponente onça-pintada, eram silenciosos sobre a terra úmida da planície. O cheiro de capivara pairava no ar fresco da manhã, promissor. Seus olhos dourados brilhavam na penumbra do amanhecer, atentos ao menor movimento da presa. Tudo estava como sempre foi—como deveria ser.

Então, o vento mudou.

Era um sopro diferente, quente demais para aquela hora, carregado por um cheiro acre que fez suas narinas arderem. Jaguá ergueu a cabeça, farejando o perigo antes mesmo de vê-lo.

Uma linha tênue e alaranjada despontava no horizonte, tremulando como uma serpente faminta. Mas não era uma miragem.

Era fogo.

O primeiro instinto de Jaguá foi ignorar. O Pantanal sempre renascia, sempre se refazia depois das secas. Mas então, a fumaça começou a subir. Primeiro uma névoa fina. Depois, densa e sufocante. O mundo ao seu redor estava mudando rápido demais.

A capivara já fugia. Os jacarés afundavam nas águas inquietas. Araras e tuiuiús cortavam o céu escurecido. Jaguá percebeu que não podia esperar mais. Ele girou sobre as patas e correu.

O fogo avançava como uma fera descontrolada. Árvores centenárias eram engolidas em segundos, e os campos antes verdes tornavam-se um oceano de brasas.

Jaguá corria. Corria como nunca correra antes.

No meio da fuga, viu uma anta caída, seus olhos arregalados de pânico. Mais adiante, um tamanduá-mirim enroscado na raiz que não tinha para onde escapar. Pequenos quatis desapareciam na fumaça como sombras sem destino.

E então veio o som mais doloroso de todos: o choro dos filhotes.

Jaguá hesitou. Cada fibra de seu corpo rugia para fugir. Mas algo dentro dele não permitiu.

Seguindo os gemidos fracos, encontrou um filhote de lobo-guará, encolhido, as patas fracas de tanto correr.

O instinto de Jaguá sempre fora predador. Mas diante daquele olhar suplicante, algo mudou.

Ele baixou o corpo, aproximou-se devagar e, com um gesto raro entre sua espécie, ergueu o filhote com delicadeza, segurando-o entre os dentes.

A luta pela sobrevivência continuou, agora não apenas por ele, mas pelo pequeno lobo-guará que confiava cegamente em sua força.

O céu já não era azul. As águas dos rios ferviam nas bordas. O ar pesava como chumbo. Mas Jaguá avançava, porque ainda havia vida para proteger.

E, mesmo cercado pelas chamas, ele não permitiria que tudo virasse cinzas.

Livro: FRAGMENTOS DO PASSADO

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