Flagrante Frustrado

Contos | 2024/5 Antologia Páginas entrelaçadas: poetas em sintonia | Gilmair Ribeiro da Silva
Publicado em 26 de Maio de 2024 ás 12h 52min

                                               Flagrante frustrado

                                               Flagrante frustrado

O verão cansativo e preguiçoso havia se apresentado oficialmente há mais de vinte dias, era uma tarde longa, de calor escaldante, típica da região noroeste do Estado de São Paulo, em que após feriado estadual, seguido de feriado municipal, os trabalhadores tanto da indústria, quanto do comércio, como é o costume nesses dias, retornam de viagens breves, normalmente, desprovidos de recursos; e, como é sabido, os empreendimentos comerciais em cidades médias passam semanas esvaziados e monótonos, o mesmo ocorrendo com as repartições públicas; não obstante, a delegacia de polícia, por tratar-se de trabalho essencial, estava aberta naquele dia.

Reinava a paz, no 9º distrito policial, o que não era comum, mas a ausência de público motivou os servidores à agilizarem seus trabalhos: no caso dos escrivães - os inquéritos: cumprimento de ofícios, pedido de perícias, intimações e despachos formais; e no caso dos investigadores, agilizar o cumprimento às ordens de serviços recebidas. A esperança de todos, e “a esperança é a última que morre, mas morre”, dizia a escrivã Luciana, era de que a Guarda Civil ou a Polícia Militar não apresentasse nenhum flagrante naquele dia; principalmente àqueles com diversas vítimas, ou com mais de um indiciado, fatos tais que chegam a demorar duas ou três horas para a conclusão. Sobre isso, dizia o Investigador Jesuel, o “Jazão”  “essa merda de lugar é imprevisível, quando você pensa que o dia vai ser tranquilo, acaba saindo daqui depois do horário”. Era isso o que normalmente ocorria, e nem dava para reclamar, porque policiais civis recebem uma merreca mensal, o tal RTP (Referência sobre Trabalho Policial), que “justifica” essa finalidade.

Ouviu-se passos nas escadas; e, de repente, uma voz ressoou: - “lembrem-se: vocês ganham RTP”, sempre ouvindo conversas, por temer ser traído, o dr. Mário Antonio, dizia sempre as mesmas coisas, inclusive, quando decidia que um flagrante deveria ser feito naquele dia, mesmo ultrapassando o horário de trabalho, já que formalmente os profissionais não podem deixar o feito para a realização de outra equipe ou para o dia seguinte. Nesses momentos, mesmo exaustos, todos olhavam de lado com cara de deboche, tendo em vista que o delegado não era levado a sério por ninguém, por tratar-se, na verdade, de uma figura retórica, folclórica, que recebia, pelas costas o apelido de “Horácio”, colocado pelo escrivão Galdino, o chefe de cartório, fazendo referência a personagem de gibi “que tinha os braços curtinhos”, segundo ele próprio

“Horácio”, na verdade era um estorvo na delegacia, mas também um mal necessário, já que por ser imprestável, ninguém lhe dava conhecimento das investigações em andamento, fazendo com que chegasse às suas mãos o trabalho já finalizado: autoria, provas, depoimentos de testemunhas, reconhecimentos pessoais e fotográficos, relatórios e fotografias. Nesse momento, de maneira cerimoniosa, Horácio, deixava o jornal, vestia o paletó, arranjava a gravata, e fazia o despacho para indiciamento do “indigitado” como gostava de dizer, utilizando na fundamentação termos em latim para mostrar-se erudito.  Quando fazia os relatórios de conclusão de um inquérito para encaminha-lo à apreciação da justiça, escrevia a palavra preclaro para se referir ao Ministério Público e festejado magistrado para se referir à juízes. Mas todos internamente sabiam que o escrivão chefe, formado em letras, leitor de literatura, fazia a correção das concordâncias sofríveis do chefe, para que fosse encaminhado ao judiciário um relatório bem escrito e fundamentado.

Galdino era culto e perverso, tanto que tendo ganhado a confiança do delegado corrigindo as besteiras que ele escrevia; na ausência dele, fazia zoeira comentando aos colegas a quantidade de erros de concordância misturados às expressões em latim. Em momento de descontração, o dr. Horácio contava suas experiências, envolvendo grandes investigações no passado, sempre em São Paulo, mas ninguém acreditava nas estórias que ele contava com ênfase e repetidamente, para diversão coletiva quando se fazia ausente. Sofrível, como dizia o investigador Vitorino, o “antigão” da turma, já experiente, com trinta anos de serviços prestados e muitas estórias para contar, “era quando Horácio se dispunha a interpretar a legislação e ensinar leis e enquadramentos”. Essa era a parte que o delegado mais gostava: “dar umas aulinhas” era só encontrar um ouvido atento que este se tornava seu palco. Guardas e PMs eram as maiores vítimas; motivo pelo qual dispensavam sempre a companhia dele nos depoimento e investigações, já que as longas citações de leis e formalidades apresentadas por ele eram tratadas de “Masturbação jurídica”, claro, sempre pelas costas. Ouvia-se os passos e logo alguém dizia: “lá vem a masturbação jurídica”

Naquela sexta-feira, escaldante e sonolenta de verão,  por volta de meio dia, todos haviam saído para o almoço, exceto o carcereiro Fabiano Albuquerque, o Fabião,  que ficara na delegacia para que a repartição não fechasse as portas;  ele, no entanto,  era limitado, de poucas letras, apresentava uma retórica informal, recheada de gírias e palavrões,  e não era fino no trato, ou seja, estava ali para algum atendimento imediato: registros de boletins de ocorrência mais simples, e  no caso de ocorrências mais graves, dar assistência e pedir que a vítima ou policiais de outras unidades aguardassem a chegada do escrivão chefe, ou da escrivã Luciana, ou mesmo o delegado para formalização do procedimento.

- De repente, ouviu-se um barulho nas escadas de madeira roídas de cupim; e logo o carcereiro viu que um homem magro, alto, de chapéu na cabeça, calçando botinas manchadas de barro, aparentemente um morador dos sítios que compunham a região, se dirigia a recepção.

- Bom dia doutor, (pessoas simples chamam funcionários que o atendem assim por acreditar que está diante de uma autoridade) meu nome é Euzébio, trago para o senhor um problema de flagrante.

- Flagrante? – sentiu no corpo, um arrepio - era só essa que faltava, sozinho aqui e.....

- Me conta isso direito, senhor, disse sem pestanejar.

Disse o caboclo:

- Estou há dois meses desconfiado que minha mulher anda me traindo, e como trabalho em turno de revezamento, hoje, saí para trabalhar, mas não fui, o senhor entende? Voltei antes e vi o momento em que o safado saiu de minha própria casa, num carro vermelho levando minha mulher. Segui os dois e vi que eles entraram num hotelzinho vagabundo localizado ali no centro, há quatro quadras daqui. Quero que vocês vão lá e prendam os dois em flagrante, ora!

O Carcereiro do seu jeitão, tentou explicar que modernamente isso não pode ser aplicado mais, que flagrante de adultério era procedimento normal no código antigo; mas indignado, Euzébio insistia, na sua argumentação:

- Eu sou vítima! Então ninguém faz nada? Pago meus impostos!

E num dado momento, para ser ainda mais convincente, disse:

- Veja bem, coloque-se no meu lugar...

Antes que terminasse a frase, o carcereiro, indignado, deu um pulo da cadeira:

- No lugar do outro talvez, no seu lugar JAMAIS, está me estranhando, maluco?

As escadas rangeram e no topo apareceu o delegado, dr. Horácio, ele havia escutado a conversa, e, ato contínuo, convidou Euzébio para que entrasse à sua sala, para a realização do que mais gostava de fazer: Ali estava um ouvido atento, seu palco.  Os demais companheiros que também haviam retornado do almoço se entreolharam, no silêncio, com cara de deboche. O dia estava completo.

(Gilmair Ribeiro da Silva)

 

 

Comentários

Muito interessante sua história. Começo, meio e fim...bravo!

ADAILTON LIMA | 28/05/2024 ás 08:35 Responder Comentários
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