FIM DO CORETO

Contos | Manoel R. Leite
Publicado em 06 de Março de 2022 ás 09h 32min

Olhar a modernidade com muita admiração é muitas vezes se esquecer do passado. Vejo a simplicidade perdida na luta desenfreada do moderno que traz algo novo, não sei se é bom, apenas moderno. Eu li isso em uma coluna de jornal, daquelas pouco lida, que servem para mostrar o seu compromisso jornalístico com a denúncia e a dita intelectualidade. O texto era intitulado FIM DO CORETO, sim o coreto havia chegado ao fim, e eu quis ver essa modernidade que agora arrancara o símbolo de muitas gerações. Fui com meu filho a tal praça para constatar o fato.

Falei ao chegarmos ao local para constatação do que o jornalista denominava “delito de maior grandeza”. E falei para o meu filho

— Vá brincar, tem um parquinho ali.

— Obrigado papai, vou no escorrega, depois balanço, compra uma paleta?

— Depois, depois.

Falei sem censurar a vontade de estar no hoje preocupado com a garantia do amanhã, algo tão comum nas crianças de hoje. Vi ele correr e experimentar a obrigatoriedade de testar todos os brinquedos do parque de uma vez só, como se em outro momento poderiam não estar ali, ou se todo começo já inicia com a pressa de um término. Não sei muito bem, mas naquele instante a palavra paleta, veio com uma necessidade de definir que era apenas picolé com recheio, um picolé com modernidade e por isso “superior” e muito mais caro. Geralmente é assim a modernidade tem sentimento de superioridade com alto preço a se pagar.

— Papai! Papai! A minha paleta

— Escolhe!

— Quero de morango, chocolate, uva...

— Calma aí rapaz! Apenas uma por vez.

Pegou a paleta e também o tablet que sempre fica perto como um amuleto, um amigo inseparável, ou acho que até uma ponte para o mundo. É mais outras da modernidade, múltiplas escolhas, é comum hoje você não pode querer apenas um picolé. _ Digo picolé porque o que de fato é, mesmo sem ser moderno. As pessoas querem fazer muitas coisas sem terminar a primeira, ou ainda sem mesmo começar, deve ser esse o ritmo do progresso.

Outra coisa do tempo presente, que encontra-se ausente é a tecnologia que nos aproxima do mundo nos distanciando dele. Sim vi meu filho a interagir com um computador portátil, coisa que ele poderia fazer em casa mesmo, e deixar de lado o local de passeio. O mundo que não se está é sempre mais agradável, o por que não mais real. Pelo menos esse deveria ser o argumento de muitos, se eles realmente argumentassem.

Nessa situação de conectividade atenta de meu filho, pude me concentrar em minha missão de desvendar “o delito de maior grandeza”. E perceber que realmente o espaço da coletividade desaparecera! Pois as pessoas estavam próximas umas das outras, mas cada uma, ou cada grupo na sua, seus exercícios físicos, pequenas rodas de conversa, e muitas proximidades mediatas ou distanciadas pela tecnologia.

— É realmente acabaram com o coreto!

— O que disse papai?

— Ali havia um coreto. Bem ali!

— Mas o que é um coreto?

Pensei em explicar que coreto era o local central de uma praça. Local de celebrações, comícios, música, teatro, local da união de uma comunidade. Pensei também em falar de quanto isso era importante para as pessoas. Mas antes de começar a explanar toda a minha vivência de apego aos coretos meu filho me interrompe.

— Já sei!

Havia “pesquisado” na internet, como se as informações substituíssem as vivências. Não havia mais a necessidade de comprovar o “delito de maior grandeza”, pois outros delitos já estavam no passado, que fora com o tempo também substituídos. Talvez os coretos virem moda novamente, talvez seja retro ou cult e as pessoas voltem a se conectar no presente, e principalmente com os presentes.

Publicado em:

Leite, Manoel Rodrigues. Emoções Tatuadas. Sinop – MT: Ações Literárias Editora, 2020

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