— O quanto as expectativas podem conduzir por caminhos de satisfação e de sofrimento? Você já parou para pensar quais são as suas expectativas? E, o quanto elas são reais?
Perguntas que para mim faziam pouco sentido. Mas me martelavam os últimos dias de aula. Encerrar as aulas com ideia de refletir era o que eu não queria naquele momento. Férias é para aliviar os estudos e o trabalho. E naquele instante o que eu menos queria era pensar em meu retorno das aulas, mesmo ansiosa em pensar na prática, como seria atender na clínica escola, fazer intervenções e “livrar” as pessoas de todo o sofrimento.
Meu nome é Evelyn e acredito que sempre me vi sendo uma psicóloga. Desde criança as pessoas comentavam que eu sabia ouvir, todos conversavam e eu as ouvia. Na adolescência eu era ótima para dar conselho, as amigas sempre perguntavam o que deveria fazer, e eu prontamente sempre tinha alguma resposta.
O mais curioso é que eu ouvia simplesmente pelo fato de não saber o que dizer. E quanto mais ouvia menos precisava falar de mim mesma, minha família nunca foi muito de conversar, então ouvir era fácil, só estar ali. Às vezes não tinha outro lugar para estar mesmo. Só que isso era bem legal.
— Evelyn, acho que você e a pessoa que mais me compreende!
— Por que?
— Você me escuta e não diz o que eu devo fazer, acho que eu posso dizer o que quiser que você vai me entender.
Isso era bom eu era aceita como confidente, sempre nas rodas de amigas, e se não sabia o que dizer apenas ouvia. Na adolescência as coisas mudaram um pouco, as amigas queriam ouvir, talvez porque os pais eram ausentes, talvez para não serem culpada pelas futuras escolhas, mas era comum pedirem a minha opinião. Como se eu soubesse o que fazer.
Aprendi que a melhor forma de me esconder era me expor. Por mais paradoxal que pareça isso dá certo e muito. Falar o que as amigas queriam ouvir era tão automático, e ao mesmo tempo tão confortante. É logico que às vezes dava errado, pois as escolhas levam a consequências nem sempre agradáveis. Talvez por isso muitas pararam de pedir conselhos, enquanto outras continuaram pois haviam acertado em suas escolhas.
Enfim férias, descontração família, amigos, paquera. E aquelas perguntas que não saiam da minha cabeça. Expectativas! Expectativas! Expectativas! As férias passaram em uma velocidade inversamente proporcional a minha vontade. Acho que o tempo deve ser um adolescente rebelde e revoltado tudo ao contrário, só para ver se a gente se irrita. Mas fazer o que retornar e reclamar é assim mesmo, então mais um semestre pela frente.
Quando fui a clínica escola para selecionar o meu primeiro paciente, escolhi uma jovem de 26 anos, eu tenho 24 anos então acredito que será tranquilo. Talvez as dúvidas sejam parecidas, talvez converse pouco com os pais, talvez tenha decepções amoras e talvez desista do atendimento. Essa era a queixa dos estagiários veteranos.
— Meu nome é Evelyn, sou a estagiária que irá te acompanhar esse semestre.
— Sou Lígia! O que aconteceu com a Débora?
— Ela se formou! Acho que ela te informou antes das férias.
— Sei, mais tinha esperança que ela continuasse o meu caso, sabe como é falar tudo de novo.
— Entendo, mas é necessário. Mas hoje quero saber de você como está se sentindo, e como passou as férias.
— Não sei acho que estou bem! Só que a muito não sei o que é férias.
Eu tinha tido férias, ela tinha tido suspensão do tratamento. Falar em férias era como falar para o paciente que nós precisamos descansar deles. E naquele momento eu sabia pouco sobre ela, apenas que tinha uma voz trêmula, quase se encolhendo, era bonita sem muita vaidade. E dava impressão que não confiava nas minhas palavras. Não entendo porque, eu havia ensaiado, e tinha lido como deveria conversar, afinal eu sabia ouvir e aconselhar. Pelos menos era o que todos diziam, e eu propositalmente escolhi acreditar.
Conversamos e fiz o “acolhimento” acho que eu que fui acolhida, ela sabia mais sobre a clínica escola do que eu. Penso que se eu tivesse dúvida deveria perguntar para ela e não para a supervisora. Ao terminar a sessão agendei o retorno e fui transcrever a sessão com máximo de detalhe que eu podia. Acho que se eu fosse reescrever seria mais simples seria “ambas seguiram o roteiro”.
A supervisora tinha uma postura que me intrigava, ela só liberava o prontuário depois da entrevista de acolhimento, acho que era sadismo, só para corrigir os erros dos estagiários. Mas, eu tinha acertado, afinal o que pode ocorrer de errado em um acolhimento.
A supervisão fora tensa, eu lendo a transcrição e a supervisora rabiscando as minhas anotações, não falando nada apenas anotando. E, de vez em quando me olhando com aquela expressão: “Fale-me mais sobre isso!” ou “Tem certeza do que está falando?”. Não sabia como reagir, então apenas tentei impressionar, se mostrar é melhor forma de se esconder, pensava eu tentando disfarçar a minha ansiedade.
Quando parei de falar ela me olhou e repetiu aquelas perguntas que haviam me incomodado no final das aulas.
— O quanto as expectativas podem conduzir por caminhos de satisfação e de sofrimento? Você já parou para pensar quais são as suas expectativas? E, o quanto elas são reais?
Achei que deveria responder naquela hora. Acho até que realmente a saberia o que dizer. No entanto ela foi direta. Me entregou duas pastas suspensas enormes e me disse.
— Continuamos na próxima supervisão!
Nas pastas estavam o prontuário de uma garota de 26 anos e a 2 anos fazia acompanhamento na clínica escola. De uma coisa eu estava certa! Se eu tivesse dúvidas sobre o funcionamento da clínica era só perguntar para Lígia.
Naquelas páginas fui descobrir que Lígia morava em um pensionato a alguns meses, e estava se preparando para voltar a morar com os pais. Não fazia faculdade. A mãe ligava para ela todos os dias, e de vez em quando a visitava. Morar com os pais pode ser insuportável, só que em seus relatos ela descrevia os pais como atenciosos e amáveis. Não conseguia entender como podemos evitar tanto estar próximos daqueles que amamos.
Precisei ler aos poucos aquele prontuário, era muito informação. E a mais incomoda de toda é que quanto mais eu lia, menos eu sabia com quem eu estava lidando. Afinal, surpresas nos tiram de nossa zona de conforto, e quanto eu me surpreendi que ao ler que Lígia havia morado oito meses na rua, e foi uma colega não muito próxima que a reconheceu e encaminhou para o serviço de assistência social. Não fazia pelos menos aos meus olhos sentido algum aquela situação. Parei para respirar e imaginar possíveis traumas que pudessem ter a levado a tal situação. Teria que ser algo muito difícil, algum sofrimento que impediria de querer ver os pais, de ter desistido do curso de medicina. A colega que a encontrou também foi entrevistada e em suas falas ela não conseguia explicar como aquela veterana tinha chegado aquele ponto.
— Ela era uma garota bonita, popular, e não entrava em frias. Sempre me pareceu bem esforçada e eu quando caloura me imaginava parecer com ela. Acho que foi isso que me assustou.
Nas falas da colega, notei o quanto sabemos pouco das pessoas, inclusive daquelas que admiramos.
No fim do prontuário ou no início encontrei o que a estagiária que atendera descreve como fator desencadeante: Lígia havia tirado uma nota baixa em uma das disciplinas que ela mais gostava. Só uma nota baixa, uma coisa tão possível, para muitos tão comum.
Mas não para Lígia, aquela nota a fez sentir incapaz, envergonhada, com dificuldade de encarar os colegas que a admiravam. Insuportável de prestar atenção aos professores que para ela havia decepcionado. E o pior de tudo o amor e o esforço dos pais não estavam sendo retribuído a altura com aquela nota tão medíocre. Então a bola de neve se instalou, vergonha, perda de concentração, queda nas notas, vergonha, culpa, isolamento, desistência do curso, fugir, sair sem rumo, fugir de si e vagar pelas ruas.
Ler tanta coisa sobre Lígia não sei se me ajudou a responder as perguntas da supervisora. Só sei que aquelas perguntas voltaram com mais intensidade em meus pensamentos.
— O quanto as expectativas podem conduzir por caminhos de satisfação e de sofrimento? Você já parou para pensar quais são as suas expectativas? E, o quanto elas são reais?
Na sessão seguinte recebi Lígia com menos conhecimento e um pouco mais de comoção. Apenas a acolhi com a seguinte pergunta:
— Qual a sua expectativa para hoje?
Publicado em:
Leite, Manoel Rodrigues. Emoções Tatuadas. Sinop – MT: Ações Literárias Editora, 2020