ESMERALDA

Contos | 2025 - ABRIL - Folhas ao vento: fragmentos de outono | Gilmair Ribeiro da Silva
Publicado em 04 de Abril de 2025 ás 20h 04min

                                                                ESMERALDA

 

Os meses de dezembro e de janeiro, não apenas pela tradição, mas também pela simbologia (e a vida é feita também de símbolos), motivam a renovação das esperanças e a busca de novas perspectivas para uma vida melhor.  A começar pelas luzes coloridas do início de dezembro, que motivam a intenção de gastos desnecessários, planejamentos de passeios; ou seja, somos movidos pelo emocional e então tudo passa a valer a pena. E, Iludindo a temporalidade, um mundo novo nos é apresentado do dia para a noite. Para algumas categorias do funcionalismo público chega a  ser uma devoção, esse momento de alegria e de felicidade provocados pelo afastamento da burocracia oficial, mesmo que se tenha a certeza de que nada de extraordinário acontecerá na sua vida no ano a seguinte;  de qualquer forma, vale é prazeroso  sair da rotina estressante do trabalho e mergulhar no universo: das possibilidades, das fantasias e dos sonhos que não  se realizam.

Para o Professor George Vilas Boas,  apaixonado por leituras, cujo  costume foi desenvolvido na infância, mediante a motivação da professora “dona Albina” que lhe emprestava livros com figuras, e aprimorado, oportunamente, pela intervenção do professor José Antônio Rodrigues, no ensino médio, que fazia contextualizações fantásticas;  esse era o momento de colocar as leituras em ordem e planejar novas leituras para o ano seguinte. (Porque a vida também é feita de voos imaginários).

 Ao se tornar leitor proficiente ele tinha o livro como objeto de desejo, e minucioso que era, relacionava, enumerava e classificava as leituras em ordem hierárquicas de prioridades, mas o seu desejo principal era embarcar no livro como numa astronave em busca de mundos melhores, fazendo de cada viagem imaginária uma busca solitária e inexplicável, que lhe proporcionava prazer.  Foi assim que surgiu primeiro a necessidade, depois o desejo de fazer uma pós-graduação em Língua Portuguesa, e só quem teve o privilégio como ele próprio, de ter sido aluno da professora Josiane Maria e Oliveira saberá discorrer com propriedade sobre o desejo transformado em paixão. Como costumava dizer existe diferença entre explicar teoricamente os ingredientes de um bolo, em contraponto a quem teve o prazer de comê-lo.

Foi isso que ocorreu numa das aulas da professora, ela colocou caixas de livros no chão e todos a rodearam sentados, lembra-se que foi tomado por uma visão inexplicável, tendo a impressão que saíra do próprio corpo, passando a apertar a mão de personagens: Bentinho, Brás Cubas, de outro lado, um pouco mais distante, sorriam orgulhosos Dostoiévski, Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles, Tostói, e outros. Depois dessa aula nunca mais foi o mesmo. O gosto virou desejo e o desejo virou paixão, e até mesmo a escrita envergonhada, que andava adormecida, entristecida brotou do nada como os lírios no campo depois da chuva. Foi ali, naquele exato momento que teve a certeza que que poderia e deveria escrever para marcar sua passagem nesse vale de lágrimas. (Porque na falta de uma biografia, a vida também merece o registro de uma trajetória).

Mas como a vida também é feita de conflitos e contradições, todo leitor proficiente, ah! Pobre leitor, enxerga diante de si sempre barreiras intransponíveis: é o tempo que parece escasso,  a burocracia no trabalho que o escraviza, o desgraçado do vizinho que revela sua carência afetiva colocando no carro um som que chama a atenção do quarteirão e estremece as paredes de sua casa -  esse  monte de feno, pela boçalidade, não tomará ciência de sua organização e disciplina pessoal: levantar cedo para ler, deixar de assistir  TV, evitar uso desnecessário do celular. E o que dizer daquele familiar que o visita em finais de semana!  Sobre esse fez a Deus uma prece a que espera um dia ser ouvido: “livrai-me dos parentes e familiares, que dos inimigos eu cuido”.

Naquele final de ano, o professor George, com recursos escassos, estava confinado na sua própria casa relendo o Clássico de Victor Hugo “O corcunda de Notre Dame”;  na primeira semana de janeiro já havia lido o primeiro volume e na segunda semana avançava para a conclusão do segundo volume, e por isso, tinha pressa, porque a releitura de os sertões à espera na escrivaninha olhava para ele com ciúmes. Olhando para a casa do vizinho “Bicho Escroto” , e lembrando da visita de familiares no final de semana sem prévio aviso, agradeceu aos céus, os compromissos de sua agenda: consulta com oculista na segunda-feira; na quarta-feira dentista, e  na sexta-feira consulta médica de rotina, pois como usuário do transporte público poderia levar o livro para ler no coletivo e nos consultórios.

Queria acelerar a leitura pois estava aflito: Esmeralda havia sido presa e condenada à morte por enforcamento, como havia lido o livro há mais de vinte anos, na releitura não se lembrava se naquele momento a cigana teria sido morta, ou de alguma maneira libertada, a verdade é que  havia se simpatizado com a moça e queria libertá-la, porque Esmeralda provocava as suas próprias fantasias, seus instintos mais primitivos e aliviava suas frustrações sociais; tanto que   lendo as descrições queria livrá-la da forca, e tinha mesmo a vontade de entrar no livro para matar o arcebispo canalha que provocou a prisão e a condenação dela, e ou matar o próprio Victor Hugo, autor, que já está morto

Logo pela manhã, com entusiasmo, pegou o livro e se dirigiu ao oculista, ocorre que, no coletivo, no banco  ao seu lado, conheceu uma versão do vizinho escroto: um rapaz magro, alto, idade para ensino médio, com um fone no ouvido, o som da música que ouvia maltratava, miseravelmente, os seus ouvidos de leitor educados pelo tom Jobim;  invadindo, sobretudo, sem permissão seu espaço psicológico. Teve vontade de esbofeteá-lo, mas como era pacífico, apenas filosofou: se o som é o resultado do prazer dele, enquanto que o resultado de quem bebe cerveja seria a urina – Será que seria de bom grado mijar na cabeça desse imbecil! ou utilizar a cabeça desse desavisado como escrivaninha para a minha leitura! Entretanto, com desprezo, guardou a raiva para que ela, oportunamente, saísse na urina, como gostava de dizer.

De fato, ficou feliz ao chegar ao consultório, ufa!  e como sempre há um limite de espera, ao abrir o livro para dar continuidade à leitura, foi interrompido por uma ex-aluna que ao vê-lo estendeu-lhe a mão com cordialidade; logo, constatou que se tratava de Alicia de quem havia procurado esquecer; sua aluna há cinco anos, nunca tivera prestado atenção às suas aula; portava-se de maneira debochada e irônica e era, acima de tudo, respondona. Foi simpático, como a situação exigia, mas pensou “tinha que ser ela para atrapalhar minha leitura!”

No retorno, estava ansioso para o término da leitura e com tanta raiva que tomou um Uber para chegar mais rápido a casa, onde leu o resto do dia e à noite inteira; e assim depois de devorar mais de cem páginas chegou a conclusão da espetacular leitura do clássico. Ficou um tanto aborrecido e foi dominado por um vazio existencial, como ocorrera na morte de sua cachorra que o acompanhara por 13 anos, porque havia gostado tanto da companhia de Esmeralda, que ela passara a ser uma pessoa querida, uma amiga – era, portanto, uma perda irreparável.

 E, Como a vida não é feita de vingança, e a proximidade do natal é propícia ao perdão; lembrou-se de uma sentença linguística ensinada pelo seu irmão mais velho: “Perdoe sempre seus inimigos, mas nunca esqueça o nome deles”. Aborrecido, tomou um banho, deitou-se nu na cama, fechou os olhos e como entrasse num transe visualizou um pelourinho abrigando três forcas: a da esquerda estava pendurado o familiar indesejado que o visitava em finais de semana sem aviso prévio, o da direita o vizinho escroto e ao meio a ex-aluna que o afrontava desprezando suas aulas;

Foi assim que pode ver Esmeralda viva dentro dele, tocando pandeiro, dançando, cantando e representando, com sua expressividade, todos aqueles que não têm voz.

Gilmair Ribeiro da Silva – Piracicaba -SP

Comentários

'

Olá! Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo. Ao utilizar este site, você concorda com o uso de cookies.