— O que nos diferencia deles? — Perguntei sem querer ter uma resposta.
— Nós temos uma vida tranquila, temos casa, conforto, qualidade de vida. Temos tudo! – disse o Mateus, colega de trabalho mais jovem e talvez mais inocente.
Naquela manhã estávamos visitando as regiões periféricas daquela cidade. Fomos contratados para assessorar novos empreendimentos imobiliários naquele município. E naquele instante estávamos vendo algo que para mim não era novo, mas naquele instante era diferente.
No Brasil é tão comum lixões espalhados nas margens de rodovias, como tudo que incomoda se coloca longe, afastado. Mas o tempo passa as cidades crescem, e o progresso aproxima aquilo que todos queriam esconder, ou fingir que não exista. Geralmente é assim os nossos lixões, são mudados de lugar quando o local antes abandonado valoriza, e assim devemos fazer algum projeto para que o local seja novamente possível de habitar, ou de estar. A sim, as pessoas que ali vivem, que ali habitam, não têm problema vão para outros lugares, serão afastadas novamente, todavia alguns ficam serão contratados para fazerem parte da inserção social. Isso faz parte da responsabilidade social.
— Será que temos tudo? E eles nada? — Falei meio a contragosto, e continuei. — Veja aquela família junta e unida, encontra uma comida e chama os outro para dividir, será que conseguimos partilhar desse jeito.
O Mateus comentou:
— É isso é bem diferente, penso que se eu não aumentar minha renda todo ano, ou pelo menos um bônus pomposo no final do mês a minha esposa pede divórcio. Sabe como é silicone não é barato, e como tudo tem que usar o que estar na moda, antes era redondo agora é mais parecido com o natural. Mas a gente vive bem.
— Vivemos competindo isso sim. Não vamos na casa para partilhar, como dizia meu pai ir na casa dos amigos é ir só para beber água. Reunimos para mostrar os móveis novos, as roupas novas, a comida que não comemos no dia a dia. Não vejo partilha vejo competição, isso cansa sabia.
— Você está muito reflexivo, deixe que eu dirijo, vamos terminar o mapeamento antes que você me converta em alguma seita filosófica.
Acompanhei o meu amigo e enquanto realizava os registros. Aqueles rostos ficavam registrados, rostos no lixo, rostos no resto. E imaginava o que me torna diferente. Talvez os lixos ao meu redor possuem melhores perfumes, são mais modernos, são valorizados e lutamos para alcançá-los, mas talvez sejam só lixos. Consumir, consumir e consumir. Esquecemos que o que descartamos não são os pacotes nem os produtos, são as pessoas, os sonhos e sabe-se lá mais o que.
Mas porque isso me incomoda esse é o meu trabalho? Aquela criança comendo resto com tanta voracidade e satisfação, que eu nunca vi meus filhos comerem, mesmo o lanche da moda no local mais badalado, tudo é descartável.
— E aí? O que vamos colocar no relatório? Você acha que é viável? _Me perguntou o Mateus.
— Vamos dizer que é viável. É necessário revitalizar o lugar, será muito lucrativo e agregará uma imagem positiva para a empresa e os financiadores. A empresa que transformou o lixo em luxo, beleza e bem estar. Acho que será um bom lema. E você o que acha?
— Um pouco exagerado. Mas vai vender muito. E as pessoas o que faremos?
— O de sempre, alguns serão contratados para a obra, divulgaremos a nossa responsabilidade social. E teremos mais um empreendimento bem sucedido.
— Ok! Vamos então não vejo a hora de ir para o hotel e tirar esse cheiro.
Saímos, mas eu tinha a certeza que aquele cheiro não sairia, que aqueles rostos no resto que promovemos também ficariam em mim. Pois diferentes dos produtos e pessoas que descartamos, as lembranças apenas escondemos mais ficam depositada em nosso lixo pessoal, e quando acumula não entramos em outros lixões para depositá-los.
Publicado em:
Leite, Manoel Rodrigues. Emoções Tatuadas. Sinop – MT: Ações Literárias Editora, 2020