ENTRE MUNDOS

Contos | Iziz De Andrade
Publicado em 08 de Março de 2022 ás 20h 45min

ENTRE MUNDOS

Estou encostada na pia envolvendo a xícara de café quentinho em minhas mãos. Aconchego melhor o roupão em meu corpo para escapar do frio que teima em rodopiar em torno de mim.

O ar condicionado esta no quente, mas mesmo assim ainda faz um frio leve, mas suficiente para me fazer arrepiar.

Olho em direção a mesa, meu filho balança as pernas distraído brincando com o cereal nadando na tigela de leite fumegante.

Como é lindo meu pequeno homenzinho. Com seus cabelos encaracolados escuros como breu.

A única coisa que herdou de mim.

Como que avisado que está sendo observado volta seus olhos castanhos acobreados para mim e sorri. Um sorriso enorme, cativante, sincero.

Meu coração derrete, esquenta, se aquece.

Ele junta as mãos em forma de coração e diz baixinho: Amo, amo, amo três vezes dando a volta no universo, você minha Mamyté

E ele volta a brincar com seus cereais.

E meu pensamento passeia para oito anos atrás... quando ele chegou em nossas vidas, depois de uma gravidez difícil mas tão desejada, sonhada.

Meu mundo se completou com sua chegada. Como se tudo agora estivesse em seu devido lugar.

E fico me perguntando: Quando ele começou a me chamar de Mamyté? Acho que desde sempre. Nunca parei para me perguntar porque ele me chamava assim, mas só  nos momentos mais carinhosos, desse nome diferente, mas tão nosso, tão secreto, tão...

Fechei os olhos para sorver e guardar esse momento gostoso, nosso, aconchegante e precioso.

Senti um calor gostoso se espalhar na cozinha com cheiro de gordura e fumaça de Carvalho, flores  silvestres e gengibre, rodopiando no ar. Abro os olhos e estou em outro mundo, outra cozinha, lá fora tem neve... e os moveis aqui dentro são rústicos, o fogão é a lenha com panelas grandes de ferro, fervendo   e meu coração está em frangalhos, lágrimas rolam silenciosas por meu rosto pingando nas beiras queimadas do fogão.

 

No quarto escuto a tosse desenfreada, esganiçada, entrecortada do serzinho que luta para continuar aqui. Preciso de toda força para juntar a bacia com água quente e o pano úmido e mais forças ainda para fazer minhas pernas se moverem para aquele quarto onde está toda dor, todo meu desespero e todo meu amor.

Quantas noites e dias? Já nem me lembro mais, quantos são, porque ate os segundos se tornaram eternidade desde que meu mundo entrou em convulsão.

Meu pequeno anjo, antes tão alegre, sol dos meus dias, já não ia brincar lá fora, não queria comer, não sorria escancarado.

Olho pela janela lá fora, o mar está revolto, não vai ser fácil os homens voltarem do mar. Mas eles são fortes e conhecedores dos segredos do tempo, do vento. Nasceram e cresceram ali. Seus pais e avós já viviam ali a muito, muito tempo. Estava em seus sangue a bravura e a sabedoria para domar o frio, o mar revolto e as rochas.

Queria muito que meu Homem não tivesse ido, queria ele aqui do meu lado nestes dias tão difíceis.  Mas, tínhamos que comer. Era dali que a aldeia tirava seu sustento. Os homens tinham de ir.

E as mulheres tinham de ser tão forte quanto, pois era nossa a responsabilidade de manter tudo certo naquele lugar. Tínhamos que ser tão fortes quanto eles para dominar o medo, as intempéries, a diversidade, para quando eles retornassem para casa.

Todos nós sabíamos que não ia ser fácil este ano, o frio estava intenso, o vento vindo do mar trazia chuva, trazia mau agouro. As pessoas adoeciam, tossiam sangue, queimavam em meio ao delírio e definhavam. Não tinha carvão, nem  madeira o suficiente para aquecer as casas de pedras. A umidade escoria pelas paredes. Mofando tudo, arruinando sorrisos, tornando tudo penoso, sufocante e frio. Muito frio.

Os mais velhos diziam que os braços da morte se estendiam e abraçavam com força os mais fracos. Mas, do outro lado o mundo era aquecido e calmo. Acreditavam que os sofridos iam para um mundo bem melhor.

 E assim aceitavam a morte, na esperança de lá fosse melhor que essa luta constante daqui. Ou se enganarem que os seus, que partiram, estavam bem melhor que eles.

Mas eu não aceitava que meu amorzinho fosse para longe de mim. Eu cuidava, e cuidava. Clamava para a mãe da terra para desviar seu olhar de cobiça sobre meu filho. Fazia unguentos para passar em seu corpo, para aliviar a dor, fazia infusões de ervas colhidas no verão e secas sobre o fogão, para aliviar sua respiração. Deixava a velha, mais velha, sangrar seu bracinho para trocar o sangue doente. E abraçava ele fortemente para esquentar seus ossos gelados.

Aquecia pedras no fogão para por em baixo do colchão. Mas nada, nada tirava aquele gelo que tinha se instalado no quarto. Mesmo tudo estando fechado a tantos dias.

A tosse voltou, então uni minhas forças e adentrei no quarto. Tudo estava envolto em meia penumbra, o quarto cheirava a unguentos, Carvalho e morte.

Aproximei-me da cama. Uma cama tão grande pra meu garotinho tão judiado.

Ele voltou seu olhos sofridos para mim e sua respiração estava acelerada, doída.

Ele tossia, e seu peito chiava. Deitei ao seu lado e o aconcheguei junto ao meu coração. Comecei a cantar bem baixinho a canção velha da aldeia que falava do mar, da beleza da terra, da força dos homens, dos antepassados que desbravaram a terra e das famílias reunidas em torno do fogão contando histórias e ouvindo canções.  Era a que ele mais gostava. Ele foi acalmando e acalmando.

Despi um pouco de suas roupas e fui passando o trapo quente embebido na água misturada a folhas de Carvalho. Secando rapidamente para ele não pegar mais friagem. Passei unguento em seu peito, pés e pescoço. Deixei ele respirar a infusão, pertinho do nariz, cobrindo-o com o cobertor.

Ajeitei as pedras quentes em baixo do colchão. Remexi as brasas dentro do aquecedor. E voltei junto a ele. Meio que o sentei para que ele tentasse  tomar um pouco do leite, que estava na caneca amornando em cima do aquecedor. Ele se recusava, balançava um pouco a cabeça dizendo não.

Eu dizia baixinho: você tem de comer para ficar forte, para poder esperar o pai e o irmão. Logo eles irão voltar pra casa. Você tem de ficar forte para ajudar eles na construção do novo barracão. Você gosta disso pequenino, mas tem que comer.

Ele afastava como podia a caneca de perto de si.

Eu já suplicava. Ele voltou seus olhos brilhantes e febris para mim.

Com um grande esforço ele começou a falar baixinho.

Mamyté você pode me dar a pedrinha do luar?

Eu perguntei: O quê?

Ele repetiu: A pedrinha do luar.

Levei um tempinho para entender e lembrar.

A pedrinha que tínhamos recolhido, na noite que os homens tinham ido para o mar. Quando nós dois voltávamos para casa, a lua já havia subido no céu. Atrasamos porque ficamos conversando na taberna onde todos se reuniam para falar da pescaria que os homens iriam trazer, dos planejamentos para superar mais esse inverno.

E no caminho para casa, na estradinha  que contornava os rochedos, ele avistou uma pedrinha branca que era mais branca que as outras. Se destacava ao luar, abaixou-se e catou.

Quando chegamos em casa ele tirou o casaco e correu até a bacia, lavou as mãos e me trouxe a pedrinha e me mostrou orgulhoso.  Me falando, rindo e feliz...

-Mamyté, olha... uma pedrinha que caiu da lua. Ela é especial, é minha e sua. Deixo ela ser sua também,  porque ela é especial, só cai da lua pra juntar pessoas que se amam muito, muito. Como a gente.

Lembrei desse momento tão especial e olhei em cima da mesinha, vi no meio de todos aqueles chás, canecas, panos, unguentos e muito mais. Lá estava a pedrinha que desde aquela noite sempre estivera no bolso do seu casaco.

Alcancei a pedrinha esticando o máximo o braço com cuidado para não mexer meu amorzinho de meu colo. Entreguei a ele e ele a beijou e apertou em sua mão.

Então tossiu de novo, e de novo, até não aguentar mais. E eu o segurava junto ao peito. E pedia novamente em silêncio para a mãe da terra não judiar e o poupar.

Quando ele se acalmou novamente se pôs a falar  baixinho, cansado. Mau dava para ouvir:

_ Mamyté, escute o que tenho para lhe dizer. Deixe- me ir. Por favor Mamyté deixe- me ir. Eu prometo que estaremos juntos novamente. Eu vou lhe encontrar Mamyté.

Basta você acreditar. Eu só quero descansar. Eu prometo que vamos nos reencontrar.

Abriu a mão e pegou a minha colocando ali a pedrinha... e disse:

Lembra que ela é especial? É nossa Mamyté, de nós dois. Porque nos amamos. Lembra?

Minhas lágrimas já escorriam em seus cabelos... mas não queria que ele me visse chorar.

Beijava sua testa, suas bochechas, seus cabelos de cachinhos dourados e respondi:

- Sim filho, me lembro sim.

Ele me olhou bem no fundo dos olhos e falou:

- Então Mamyté guarda ela pra mim... me devolve quando a gente se reencontrar, aí não vai estar tão frio, não vai mais doer respirar. E vamos cantar juntos de novo. Por favor minha Mamyté

Eu chorava, soluçava, e ele suplicava com aquele olhar castanho dourado.

Então cedi, e respondi... segurando sua mão fria e a pedra.

 - Está bem, está bem, vou deixar você ir. Soluçando eu cedia e o entregava aos cuidados da Mãe Terra. O abençoava e deixava ele ir.

E o beijava  o apertava junto a mim. Ele foi se acalmando, derretendo em meus braços, já não tossia, não estremecida. Já não estava mais ali. Eu sabia. Mas, continuei ali abraçada. Trazia ele junto ao meu coração e sentia o cheiro de seus cabelos. Dos cachos que eu tanto amava. Fechei os olhos... já não chorava, somente amava e amava.

Abri meus olhos devagar estava novamente encostada a pia com a xícara de café entre as mãos. Lágrimas deslizavam em meu rosto.

Olhei para meu filho, ele estava ali, sentado, balançando as pernas e brincando com os cereais na tigela de leite.

Suspirei aliviada... ele estava ali. Aqueles olhos castanhos acobreados, sorriam para mim.

Corri até ele e o apertei junto ao peito, tão forte, tão forte, que ele ralhou:

Mamãe você vai me machucar. O que tem na sua mão que me arranhou?

Então abriu minha mão e exclamou:

Olha Mamyté, a pedrinha da lua, você a achou.

Tirou ela de minha mão correu até o balcão e juntou ela a outra pedrinha branca, que estava ali há alguns meses, me fazendo de quando em quando, recordar de uma estranha noite no balanço de minha área.  Sorriu o mais lindo sorriso do mundo e falou:

- Agora só faltam cinco. Para ser o número perfeito. São sete, não é mamãe?

 

 

Mamyté= mamãe em lituano língua Báltico antiga.

 

Comentários

Lindo de mais, já muito ansiosa pelo próximo...

Anny | 08/03/2022 ás 21:22 Responder Comentários

E de tirar o fôlego, a emoção toma conta não tem jeito, simplismente apaixonada ???????? ansiosa para o próximo.

Sonia Mara ruthes | 10/03/2022 ás 14:26 Responder Comentários

Obrigada Sonia Mara....bmaravilhadacestou eu com seu comentário. Gratidão.

Iziz para Sonia Mara | 10/03/2022 ás 20:16 Responder Comentários

Que conto maravilhoso! Só uma mãe que ama demais seu filho pode escrever linhas como estas! Confesso que me emocionei! Parabéns! Palmas pra você!

Enoque Gabriel | 04/04/2022 ás 12:52 Responder Comentários
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