Dizem que a tatuagem é para toda a vida. É eu sei disso muito bem, sempre pode retirar parte da tinta, ou acrescentar novos retoques. Só que sempre fica algo.
Sou tatuador a quinze anos, e já vi muita coisa, muitas “figuras” passaram pelo meu estúdio. Tenho um cliente antigo. O nome dele é Willian, a quinze anos faz suas tatoos comigo. Nesse período já fiz muitos retoques.
Lembro-me bem do primeiro dia que o vi. Ele estava eufórico, parecia um ar feliz, e acima de tudo muito orgulhoso por ter sido aprovado na faculdade de direito.
— Me faz uma tatuagem no braço direito! Eu quero que todos vejam que serei o melhor juiz criminal.
— Tem alguma coisa em especial? Perguntei-lhe.
— Sim! Tenho este desenho!
O desenho era de uma balança com uma espada no centro. Seria muito comum para aqueles que homenageiam a justiça. O que trazia de diferente era o sangue escorrendo pela espada, e no prato mais pesado a imagem de uma pistola, com o cano voltado parcialmente para frente. Fiz o trabalho enquanto ele relatava que iria fazer justiça, condenar todo tipo de gente: assaltante, estuprador, assassinos e toda aquela corja que segundo ele precisava ser afastada da sociedade. Conversamos um pouco e um pouco também concordei com ele, mas não seria eu que iria salvar o mundo, então só concordar seria o suficiente.
Depois da tatuagem pronta conversamos, ele elogiou o serviço e despedimos. Vi que ao sair ele caminhava querendo olhar para nova imagem estampada em seu braço, fato muito comum quando se tatua.
Três anos depois ele volta para fazer uma nova tatuagem. Segundo ele
— Dessa vez eu quero algo mais simples. Tenho uma noiva e quero provar que eu a amo, quero que tatue W&F em minha perna, acho que encontrei a mulher de minha vida.
Foi um serviço rápido e tranquilo. Sem muitos comentários. Perguntei como estava a carreira de juiz e notei que já não havia muita empolgação. Como ele não queria tocar no assunto, não seria eu que iria insistir. Apenas fiz a tatoo que provaria o seu amor. As pessoas esquecem que a tinta penetra apenas na pele, se eles quisessem que tocassem o coração, penso que teria que ser outro tipo de tintas. É interessante como as pessoas se acostumam fácil com tudo, acostumam com as tatuagens, com o amor, com as novidades e até mesmo com as desilusões. Com o Willian não fora diferente. Dois anos depois me pediu para cobrir a tatuagem de amor eterno que havia terminado. Coloquei em cima uma corrente de espinhos, pouco se notara as letras no fundo. Mas certamente os espinhos cobriam aquele amor eterno que acabara.
Nos anos que se seguiram Willian tornou-se um cliente mais assíduo. Tatuou tigre, mensagem, caveira, asas, símbolos e acima de tudo sonhos. Sonhos eternos que muitas vezes foram substituídos ou cobertos com novos sonhos sempre com promessas de durarem para sempre. Ou até a próxima ilusão e um novo sonho.
O último serviço que fiz no Willian foi um misto de retoque com cobertura. A balança da justiça não era mais de um juiz criminal lutando por justiça. Agora nos dois pratos tinha dinheiro, e o sangue escorrendo da espada deu lugar a ouro e algumas pedras preciosas. Parte do sonho estava ainda ali, o jovem que queria livrar o mundo da escória – como ele afirma a quinze anos, era pago por essa mesma escória. Então nada mais coerente mudar a tatuagem, afinal segundo ele:
— É o dinheiro que manda. E a justiça custa caro, pois apenas com dinheiro se consegue a justiça.
— Sim é isso mesmo!
Apenas concordei novamente. Afinal, apenas tatuo muitos sonhos eternos que mais cedo ou mais tarde acabam. Sua fala era coerente com a sua vida e, por isso nada mais certo mudar a tatuagem do juiz criminal para o advogado de porta de cadeia que ele se tornou.
Publicado em:
Leite, Manoel Rodrigues. Emoções Tatuadas. Sinop – MT: Ações Literárias Editora, 2020