Ela

Crônicas | 2023/6 Antologia As sombras da escuridão | Fernanda Fernandes
Publicado em 29 de Janeiro de 2024 ás 21h 08min

Desde criança eu conhecia ela. A sinistra mulher esquelética de olhar austero, vestida de negro, e que estava sempre a minha volta como uma sombra sobre meu doce mundo. Eu fujo dela todos os dias ao sol, mas todas as noites ela me encontra nas trevas. Não importa onde eu vá ou o quanto tente me esconder. Onde quer que eu esteja, a minha porta ela vem sempre bater. Com possessividade doentia, ela me desperta aos gritos de meus devaneios. Me assusta e me assombra. Me acorda de meus belos sonhos com inesperados pesadelos. Ameaça destruir meus projetos como uma amante narcisista que exige toda minha atenção. Ela sabe o quanto a detesto, mas isso só parece a excitar cada vez mais. Meu medo e repulsa só a trazem mais pra perto. Me toca com suas mãos frias para me provocar arrepios. Deixa seu cheiro de flores mortas e seus rastros empoeirados, por onde ela sabe que eu irei passar. Tento a esquecer de todas as formas, mas todos a minha volta me lembram de sua existência e me perguntam se a vi. Me contam que ela estava com outra pessoa, muitas vezes alguém que eu conheci. E que ela ultimamente tem estado mais presente, saído com muitas pessoas, as vezes com várias, simultaneamente. Ela não tem preferências. Anda com homens, mulheres, velhos e jovens, e até mesmo crianças ela arrasta para seu covil. Ela está por toda mídia e nas redes sociais tem infinitos seguidores. Influenciadora nefasta, que gosta de chocar e seduzir através do medo, e agora todos só falam dela. E ela, parece sentir um mórbido prazer em me machucar. Talvez por vingança e para ostentar seu poder, já que todos são obcecados por ela, enquanto eu, depois de desejá-la por um tempo, há alguns anos a deixei, para me unir apaixonadamente com sua rival, uma jovem sorridente chamada Vida, que me presenteia sempre com lindas flores e filhotinhos de animais. E para se vingar de minha rejeição ela espreita todos que amo, flertando com eles cada vez que me distraio. Roubou vários filhos meus, sem nenhuma razão, e jamais os devolveu, dizendo apenas que também eram dela. Ela tem outro amante, um carrasco odiável chamado Tempo, a quem ela me entrega contra minha vontade. Aos olhos de todos, ele se mostra como um bom senhor, que sabe curar dores, ajuda e consola. Mas comigo ele é violento, insaciável, impaciente e cruel. Luto com todas minhas forças e resisto a ele, mas sendo mais forte, ele sempre me domina e deixa marcas em meu corpo, quase todos os dias. Queria poder ter tido a chance de oferecer todo amor que tenho em meu coração, e minha alma imortal, esta que ainda é minha, para um outro humano que eu amasse e que me amasse também. Alguém que não se importasse com as cicatrizes que o detestável Tempo me deixou. Assim, nós, juntamente com a querida Vida, poderíamos ter alguns momentos felizes enquanto ela não chegasse. Já o meu corpo, esse não posso oferecer a ninguém, pois não sou dona dele. Quando o Tempo cansar dos abusos e buscar secretamente outras vítimas mais jovens para seus jogos de tortura, meu corpo pertencerá somente a ela, a mulher de negro, e cedo ou tarde, inevitavelmente, ela irá me devorar. Mas como tenho ainda todo o amor guardado dentro de mim, talvez se eu puder aceitar meu destino, sem resistir mais e encarando-a de frente, aprendendo a amá-la da forma que é, perdoando-a por seu terrível comportamento, e me esforçando para enxergar alguma beleza em suas tristes e desoladas feições, quem sabe possamos, finalmente um dia, nos reconciliar. E então eu me despedirei de minha adorável Vida, para me unir a Ela, para sempre.

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