E se o livro lesse você?
Crônicas | Carlos Roberto RibeiroPublicado em 29 de Outubro de 2024 ás 09h 37min
Imagine. O livro sobre a mesa, páginas virgens do contato humano. As capas guardam histórias de mundos distintos, suspirando uma sabedoria silenciosa. E se, ao invés de você virar a primeira página, fosse o livro quem tomasse a liberdade de te ler?
O ritual começaria com uma pausa involuntária, como quem pressente um toque no ombro. Você folhearia aquela capa de couro, veludo ou papel, mas, ao encostar a palma, a textura se metamorfosearia, absorvendo algo mais profundo que pele e calor. Ele sentiria seu pulsar. As primeiras páginas, sensíveis, como olfato que capta cheiros antigos, respirariam o ar ao seu redor e ali, entre uma célula e outra de papel, começaria a leitura.
Primeiro, os olhos do livro fitariam os seus, penetrantes, buscando algo além da pupila. Leriam a história que você carrega — o volume silencioso da sua jornada, os mistérios que ainda não ousou revelar. Passaria pela infância perdida entre os altos e baixos de suas fantasias, pelas cicatrizes deixadas por cada sonho frustrado, cada queda, cada pedaço de você que teve que deixar para trás, mas ainda arde em você, como cicatriz de memória.
Ele sentiria o peso de suas lágrimas ainda escondidas, os sorrisos que você esqueceu de dar, aquelas palavras que engoliu e que se acumularam em sua garganta como pequenas pedras afiadas. A cada folha que viraria, absorveria os detalhes de sua personalidade, captando cada nuance com uma curiosidade quase infantil, mas ainda assim sábia. Para ele, você é um enigma sem páginas, uma história que não foi contada e que ele, de alguma forma, pode finalmente desenrolar.
Enquanto o livro te lê, um calafrio te percorre. Sente-se despido de todas as defesas, nu como nunca esteve. Ele percebe seu medo de fracassar, mas também o orgulho em cada conquista, os tropeços, os passos incertos e os voos que pensou jamais serem possíveis. Esse livro, o único a desvendar os pensamentos que você tenta calar, agora conhece até mesmo o som do seu silêncio.
Mas o mais fascinante é como ele não julga; apenas observa, absorve. Cada passagem revela um fragmento do que você é e, paradoxalmente, do que você ainda será. Ele adentra os seus desejos mais secretos, os não ditos, as palavras que sequer ousou pensar. A história que ele lê é crua, é viva, e se desdobra como um novelo de possibilidades.
Então, ele chega ao fim. E sem um ponto final, apenas uma pausa silenciosa, ele fecha suas páginas e repousa. Você, agora, sente-se uma narrativa mais completa, ainda que o enredo continue a se escrever todos os dias. Ele não levou nada de você, apenas te relembrou de partes que insistia em esquecer, te leu com uma honestidade que talvez você mesmo nunca tenha tido. É um espelho de papel, onde tudo se reflete sem disfarces.
E, ao final, resta a pergunta: ao ser lido por ele, você teria coragem de continuar sendo autor de sua própria história, sabendo que alguém — ou algo — leu você tão profundamente quanto ninguém mais?
Comentários
Parece que estava me lendo a mim mesma, parabéns! O livro realmente me leu.
Keila Rackel Tavares | 29/10/2024 ás 19:55 Responder ComentáriosOi Keila! Que bom quando mergulhamos na leitura e também nos deixamos ler. Você me fez lembrar de que, quando estamos lendo, viajamos com as personagens, entramos na história, andamos nos lugares onde as coisas estão acontecendo. Já imaginou se do lado de lá alguém olhasse para nós e perguntasse: o que você está fazendo aí forasteiro, está nos espionando? Vê, já estou viajando aqui. rsrs
Carlos Roberto Ribeiro | 31/10/2024 ás 17:10 Responder Comentários