Como a névoa ao sol de outono

Contos | 2025 - NOVEMBRO - Caminhos da saudade: reflexões e encontros | Gilmair Ribeiro da Silva
Publicado em 29 de Junho de 2025 ás 21h 41min

Como a névoa ao sol de outono

Aos 13 anos de idade já tinha uma rotina estabelecida, repleta de obrigações a cumprir. Fazia parte da tradição familiar que os meninos da casa assumissem, desde cedo, determinadas responsabilidades — "para se tornarem homens", sentenciava o senhor João Rossi, o patriarca da família.

A senhora Carmem, mãe zelosa, concordava. Ela cuidava dos afazeres da casa durante o dia e, à noite, dedicava-se ao bem-estar do marido, do menino e dos dois irmãos mais velhos, ainda adolescentes.

Nos dias quentes — e, no interior do Estado de São Paulo, são muitos —, o menino punha-se de pé ao amanhecer. Tomava apenas um café preto, pois nem sempre havia pão com manteiga.

 Em seguida, rumava à sorveteria Santa Gertrudes, localizada a quatro quarteirões de sua casa, onde recebia, das mãos do “Paulão Sorveteiro”, o carrinho que manejava sacolejando pelas ruas dos bairros vizinhos.

Nos dias frios, trocava o ofício: engraxava sapatos na Praça Deodoro da Fonseca.

Se na melodia do pífaro “O Menino de Família”, não despertava no imaginário popular um nome, nem de onde vinha, tampouco a que família pertencia; entretanto, no populeixo, todos o identificavam: “É o menino sorveteiro.”

Com a porcentagem recebida pela venda dos sorvetes — ou pelos sapatos engraxados —, contribuía com as despesas da casa; e era do suor do seu trabalho árduo que vinham, também, o material escolar complementar e pequenas peças de roupa de uso pessoal.

À tarde, ia para a escola orgulhoso: tinha dinheiro para comprar doces e salgadinhos.

Mas o precoce e tímido Aurélio, acostumado aos infortúnios e carências que a vida de menino pobre lhe impunha, não vislumbrava aquilo que não era uma escolha, mas um destino a ser seguido; e a alienação provocada pelos trabalhos excessivos o impossibilitava de reconhecer o próprio esforço, empregado apenas para gerar lucros a seus patrões — em contraponto a uma realização pessoal que, para ele, já não importava.

Ele ainda não havia lido Karl Marx, como o faria anos mais tarde na universidade, graças ao uso do ProUni.

Naquele tempo, seu único lazer era, ao cair da tarde, depois das aulas, encontrar os dois amigos — Fininho e Malaquias — para bater bola no campinho de futebol do bairro.

Mas era quando a noite silenciosa chegava, com seus mistérios a envolvê-lo, que algo o inquietava. No estremecer do corpo, deitado na cama solitária, rendia-se às viagens imaginárias proporcionadas por sua mente criativa.

Sonhava acordado com aventuras amorosas e, nesse instante — enquanto fazia justiça com as próprias mãos —, navegava por um mar revolto, de águas turvas, que o conduziam do delírio a uma condição de angústia, terminando sempre num vazio existencial.

Contexto de sua aflição, os dois amigos, por serem mais velhos, gostavam de contar aventuras amorosas vividas com as meninas amigas em comum, e tais narrativas acabavam servindo de material de reflexão na cama, antes de dormir.

 Até que certo dia, não havendo planejamento prévio, sua mãe, após fazer-lhe diversas recomendações, anunciou que teria médico à tarde, e logo saiu apressada. Naquele dia, atormentado por um vulcão que dominava a sua mente, saiu de casa sem rumo, mas logo ao lado da sua casa encontrou a filha da vizinha parede e meia, Sílvia, de 15 anos, e, conversando com ela, sem saber como isso ocorrera, acabou a levando para sua casa e, por final ao seu quarto.

Lembrou-se das histórias contadas por seus amigos relacionadas a ela, e não pensou duas vezes – tinha ali a oportunidade de fazer tudo o que os dois amigos diziam fazer, verdade ou não. Pela primeira vez na vida sentiu-se homem feito.

 Ocorre que, depois de diversas tentativas, precedidas maneiras e distintas posturas, não havia ainda conseguido o intento almejado, quando de repente, sua mãe, talvez por ter esquecido algum documento ou desistido da consulta, entra rapidamente pela porta aberta e os surpreende sem roupa na tentativa de penetração. Correu para fora da casa com as calças na mão, e a menina fez o mesmo, saindo pela porta em velocidade.

Amedrontado e envergonhado, Aurélio, ficou o dia todo escondido, acreditando que iria apanhar muito, pois conhecia bem a rigidez de seu pai e de sua mãe em relação aos costumes e a religião. À noite, foi encontrado pelo irmão mais velho, encolhido em um banco da praça central, e este o conduziu para casa. Seu pai demonstrou compreensão e o instruiu sobre aquelas situações, explicando os perigos de agir fora de hora e de maneira inadequada. Ele ficou agradecido e passou a admirar seu pai, algo que antes não fizera.

Daquela aventura malsucedida, restou um trauma; pois, a partir desse dia, ele passou a ter um medo profundo de iniciar sua vida sexual. Fugia, inclusive, de qualquer menina que demonstrasse carinho ou simpatia. "O cara é estranho, não gosta de meninas", ainda era obrigado a ouvir dos meninos da escola.

 Embora tímido, discreto e agora humilhado, dedicou seus dias a boas leituras; e foi através delas, que viu seu conhecimento aumentar em diversas matérias e passou a desenvolver um raciocínio diferenciado. Talvez por essa nova perspectiva, aos 16 anos, teve uma grande ideia: Pediu permissão na empresa em que trabalhava e marcou uma consulta médica – teve sorte.
O doutor Otávio, ao adentrar na sala, leu a ficha: "dores nas partes baixas, inclusive após o banho, na hora em que relaxa e se prepara para dormir..." - Doutor, na verdade, não sinto dor alguma, mas enfrento um problema mais sério. Como não tenho coragem de compartilhar isso com ninguém, achei que o senhor poderia me ajudar.

O médico, perplexo, respondeu:

- Prossiga...

Ele, então, contou o ocorrido envolvendo a menina, o fato de sua mãe tê-lo surpreendido e o trauma resultante. Após ser examinado cuidadosamente durante quarenta minutos e o médico não encontrar nada em suas partes baixas, Ele recebeu conselhos sobre as questões sexuais, a importância de uma iniciação segura e o momento certo para uma vida sexual saudável.

Assim, foi agendada uma nova consulta para 30 dias depois. Foi nesse período que ele conseguiu planejar a iniciação de sua vida sexual de maneira saudável, segura e sem traumas, passando a considerar aquele médico como uma de suas referências, ao lado de Machado de Assis e Manuel Bandeira.

De repente, um barulho no teto ou talvez o farfalhar dos galhos e folhas dos ipês na janela o despertaram, trazendo-o de volta ao mundo real, onde os sonhos se dissolvem como a névoa ao sol de outono. Assim, como quem desperta suavemente de um encantamento, ajustou-se melhor à cama, envolveu-a por trás. Massageando-a com as pontas dos dedos, com carinho, aproximou lentamente os lábios de seu pescoço. Ela se virou e ele pôde ver seus olhos escuros e sombrios, como a própria vida em busca de um sentido. Num sussurro, ou talvez num gemido inexprimível, antes que seus lábios tocassem os lábios carnudos e provocantes dela, pronunciou:

— Nossa! Falei demais. Nem sei por que estou contando a você coisas que nunca antes revelei a outra pessoa— Ai, que vergonha! Pensando bem, estou tomando seu tempo.

Ela apenas sorriu — um sorriso meigo, calmo e encantador, como ele nunca vira antes.

— Não se preocupe, passaram-se apenas meia hora. Temos ainda uma hora e meia. Mas, por favor, sem beijos — sou uma profissional!

 

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