Cheiro de infância

Contos | 2025 - AGOSTO - Ventos do tempo: Memórias e despedidas | Neiva Guarienti Pagno
Publicado em 16 de Julho de 2025 ás 20h 52min

A humilde estradinha de terra rodeada por hortênsias azuis em ambos os lados dava para um pequeno portão de ferro. Ao abri-lo, um belo jardim. Florido. Gramado. Passava por um portãozinho na calçada vermelha e entrava.

A casa era grande e espaçosa. De alvenaria. Cinco quartos. Todos com quatro camas e um roupeiro de madeira. O quarto principal era o da nona. No lado direito, a cama. Cama de solteiro. Viúva. Não precisava de cama de casal. No canto esquerdo, um roupeiro antigo. Bem perto da porta, uma mesinha com cadeira, onde ela guardava todos os seus remédios. A idade avançada a fazia tomar muitos. Insulina, principalmente, por causa da diabetes.

Saindo do quarto, a sala grande. Vários móveis e a grande televisão antiga, preto e branco. Em cima, no alto da parede, o velho relógio de pêndulo. Dom...dom...dom... ele fazia. Ao meio-dia e à meia-noite. 

Entre a sala e a enorme cozinha, que aliás eram duas, uma ampla área para receber as visitas. O banco de madeira encostado na parede, pintado com tinta nova todos os anos. Mas ele já era de idade. Nas outras paredes, as cadeiras. De palha trançada e também pintadas ano a ano. Antigo costume da família. As cadeiras não terminavam nunca.

Na cozinha de entrada, a grande mesa bem no centro, onde cabia todo mundo. Quer dizer, quase todo mundo, porque a família era grande. A velha geladeira azul num canto, o freezer branco em outro. No alto, perto da janela que dava vista para o pomar, o suporte que apoiava o velho rádio. Ainda do nono. Parecia uma caixa de abelha. No canto esquerdo, o fogão à lenha. Tanta comida foi feita nele. Tanta panela de arroz, feijão, carne de frango, polenta, café. No outro canto, a cristaleira. Quem não tinha uma...

A estreita porta entre o fogão e a cristaleira dava para a segunda cozinha. O guarda-louças, a pia, o armário velho de madeira, a mesinha onde se moía o café, a pimenta.

Ao lado do guarda-louças, uma porta que dava para o corredor. No final, a escada temida: dez degraus. Era preciso muito cuidado ao descer, mas o cuidado principal era com a nona. Já velha, pesada, cega de um olho, andava devagar. Não poderia escorregar. 

Na metade da escada, do lado esquerdo, um reservatório de água: grande, cheio de limo. Dava medo. Na ponta do pé para espiar lá dentro. Tinha pouca água, mas se alguém caísse ali... Próximo a ele tinha a horta. Sempre cheia de verduras, hortaliças e os chás da nona.

Indo para o outro lado da escada, o porão. Hum...aquele cheirinho de queijo, salame, poeira, sei lá...friozinho lá dentro. O ano todo. Conservava tudo.

Ao pé da escada, a outra área. Espaçosa também. Cheia de flores nos dois lados. Ao lado direito, na primeira porta, uma despensa. Quinquilharia de tudo quanto é coisa. Hábito de gente antiga. Na segunda porta, o banheiro: amplo e até que moderno.

No fim da área, já do lado esquerdo, o tanque enorme. Máquina de lavar não tinha. Era o tanque e a tábua de lavar. Mas tinha água encanada. Ali, um pergolado antigo suspendia for de maio, orquídeas, samambaias, flores. Da nona. Ao lado do tanque também. Flores e mais flores, de todos os tipos, de todas as cores, de várias espécies.

Saindo da casa grande, o portão dava para o extenso quintal. Garagem. Chiqueiro. Galinheiro. Estrebaria. O pasto para o gado. Galpões. E não poderia faltar o pomar: tangerinas, bananas, araticum, caqui, bergamotas, abacaxis, ananás, abacates, limões, laranja do céu, peras, maçãs, uva paraguaia. E o mais imponente: o parreiral. Muita uva, muito suco, muito vinho.

Quando se é criança, o Natal demora a chegar. A Páscoa fica tão longe... O aniversário, nem se fala...Mas o tempo passa depressa. A vida passa depressa. A meninice é algo distante. 

A casa ainda hoje está lá. No entanto, já não é a mesma casa, já não tem o mesmo quintal, já não existe mais o pomar, já não vivem as mesmas pessoas. 

Casa da nona tem marca na alma, casa da nona não se esquece nunca, porque tem cheiro de infância.

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