Cerzito de Rimas nos Rastros Dos Panos
Poemas | Antologia Clube da Poesia e Declamação Gaúcha | JOSETI GOMESPublicado em 02 de Novembro de 2025 ás 22h 51min
CERZIDO DE RIMAS NOS RASTROS DOS PANOS
Joseti Gomes
A ferrugem na tua pele
sangrou feridas antigas.
A poeira dos teus olhos
não encobriu o retrato,
impresso na tua imagem,
que insiste nesta viagem
de me levar ao passado.
Ouço tua voz insistente
deixando rastros nos panos
que ultrapassaram os anos
vestindo os sonhos dos moços.
Ora sábios, ora em alvoroço,
nas estampas coloridas
que enfeitavam a vida
dos que sorriam felizes
com a fartura do pouco.
O toque das rugas sábias,
de dedos já centenários,
corriam nos calendários
contando dia por dia.
Brotavam peças sem nome
cerzidas à luz de velas,
a chamas de querosene,
que enfumaçavam paredes
e iluminavam as mesas
que matavam nossa fome.
Fabricaste os vestidos
pra os olhares cobiçosos,
daqueles bailes antigos,
onde uma gaita manhosa
abria as suas asas
pros romances que surgiam
bordados em ponto cruz.
Fabricaste tantos véus
pras noivas encabuladas
que partiam pras costuras
dos caminhos de outras casas.
Costuraste cama e mesa...
Também pariste a certeza
das colchas de mil retalhos
que consertavam casórios
que não podiam ter fim.
E tu vieste, pra mim,
costurando sem temor
a minha história de amor
num altar de ofertório.
O tempo também costura...
Costurou rima pros homens,
que precisavam ter filhos,
unindo vida aos seus nomes
registrados em cartórios
que alinhavaram permutas.
Eram frutos que chegavam
iluminando suas casas
pra depois bateram asas
nos ciclos da vida bruta.
Enquanto os pais ensinavam
as lides para os guris,
fascinadas pela máquina
matraqueando nas tardes
com mate doce e biscoito,
as meninas conheciam
o milagre das junções
de rendas, linho e galões
que corriam chão à fora,
nos cerzidos mais afoitos.
E lá te ias com eles
fabricar novas roupagens...
Cobrir corpos das imagens
dos santos, nas capelinhas.
Fazer tapetes pros pés
que vinham postar-se unidos
nas orações de pedidos
por chuva ou por tempo bom,
mas que trouxessem a benção
pra uma colheita que vinha.
Hoje, ali descansando,
vejo passar num segundo
toda uma vida em costura
de mulheres, sem molduras,
que cosiam seus retratos.
Com agulhas e botões,
cantarolando canções,
gravaram, nesses tecidos
os tantos anos vividos
através das gerações.
Embora esse teu ofício
de costurar, permaneça;
embora a tua beleza
esteja ali estampada;
teus passos nesta estrada
foram apertando demais.
Franziram roupas modernas,
enferrujando tuas pernas
que pediram por descanso,
já não caminhando mais.
Então, te peguei em meu colo
e embalei o teu sono.
Não estás no abandono,
esquecida, onde figuras.
Conquistaste bem no alto
da prateleira de acervos
o lugar em que te vejo
reinando na eternidade...
Réquiem pra posteridade,
velha máquina de costura!