Carta às minhas ilusões

Cartas | Antologia Dolores Flor e convidados: tecendo vidas | Noi Soul
Publicado em 23 de Janeiro de 2024 ás 21h 49min

 

foram 44 anos 

fantasiando 

como haveria 

de ter sido 

se eu tivesse 

te dado a mão 

e fugido mata adentro 

como um tolo ladrão 

de sonhos que me corroeram 

desde o minuto em que eu disse

NÃO 

foi pelos meus pais 

a honra de minhas irmãs

a tranquilidade de meus irmãos 

foi pelos vizinhos 

pelas trouxas de roupa 

que mamãe carregaria sozinha 

pelo burburinho e vergonha 

de outros 

eu disse, eu te disse

NÃO 

estava tudo planejado

você viria à meia noite

jogaria pedras em minha janela

sonho dourado de toda donzela

eu estaria em ânsia

à sua espera

com a trouxa de poucas roupas 

pronta para a viagem

carta escrita às pressas

deixada sobre o colchão puído

pedia desculpa a todos 

principalmente à mamãe 

ela choraria muito

se sentindo culpada 

pesada

desgostosa

enganada

talvez até morresse, coitada 

de tanta tristeza por mim

quando vi sua mão estendida

seus olhos brilhavam

meu coração sabia 

que a resposta sempre fora

SIM

mas os lábios dormentes 

os pensamentos medrosos 

as angústias da mente 

me induziram à negação 

SAIA, SAIA DAQUI

seus olhos azuis cintalavam 

seus cabelos louros de anjo

me acusavam 

de impiedade e covardia

o que haveria 

de ter sido de mim

no outro dia 

se minha mão tivesse ido

seguido o caminho 

incerto 

deserto 

coberto de prometidas aventuras

desventuras de um ser 

que nunca veio a saber 

ninguém soube dos planos

nem da carta rasgada

e queimada

nem da guerra travada 

nem dos sacrifícios feitos 

no dia seguinte 

tudo do mesmo jeito

apenas meu pai 

com seu pensar suspeito 

agarrou-me o braço 

destacou-me das outras 

incendiou o meu couro 

com seu único olhar

veja, mulher, esta aqui está pronta 

pronta para casar!

ante meu olhar perplexo

no alto de meus 15 anos 

escondia o peito firme

amarrado com um pano 

pois papai sempre que via

os mamilos furando o tecido 

das nossas vestes 

forjava lá o seu plano 

minha irmã, a mais velha

casou-se aos 13 anos 

e agora, aos 22, 

já tinha um time pronto 

todo ano, um bebê novo

uns vingavam 

outros transformavam-se

em anjos...

mamãe disse ser estupidez

minhas regras ainda não eram descidas

e esta era a única saída 

para meu pai aceitar

POIS VAI ASSIM MESMO A MOLECA

SE NÃO VAI DAR CRIA, BRECA 

MAS AQUI NÃO VAI MAIS MORAR

JÁ FIZ TODO O ARRANJO

AQUELE MENINO DOS ROCHA

ELE É UM BOM CURIÁ

mês e meio depois 

já casada e noutra casa

um barraco de dois cômodos 

comecei nova história

meu marido era tão jovem 

e consigo ele trouxe 

uma mãe e um irmão de colo

este foi nosso primeiro filho

depois dele, mais 10

todos paridos na força 

de uma parteira e sua fé

nossa casa foi crescida 

numa luta aguerrida 

vencida com muito louvor

a mudança pra cidade 

foi pura necessidade 

de fugir da dura seca

que matava de fome e sede

todo o que se atrevesse 

a dar de frente com ela

sem um tostão ou panela 

chegamos neste mundo hostil

mas a bondade humana 

também se fez no trajeto 

nós fomos acolhidos

objetos

de caridade de alguns 

40 anos de cumplicidade 

9 filhos crescidos 

1 morrido na maternidade 

nosso anjinho protetor

ninguém duvide, o nosso amor

foi verdadeiro e construído 

juntos deixamos legado 

de boa gente sobre a Terra 

mas não é assim que se encerra 

a minha história, não senhor.

a viuvez me deixou forte 

porque eu teria que ter a sorte 

da minha vida

em minhas mãos 

chorei

e respeitei meu luto 

e a vida me deu o atributo 

de resgatar aquela mão 

aquela que na juventude arreneguei 

deixei passar e disse

NÃO 

de volta, com suas rugas 

e histórias

queria o dito reacender a memória 

da outrora tão fogosa 

e juvenil paixão

deixei os preconceitos de lado 

e me entreguei a seus braços 

mesmo com brados de NÃOS 

foram 6 meses conturbados 

no início tão encantado 

no fim, triste desilusão 

ele brincou com meus sentimentos 

e não quis ouvir meus lamentos 

não amadureceu 

apesar dos cabelos brancos

e da falta deles

não aprendeu a respeitar o humano 

não se despiu pra despir outro ser

eu nunca poderia 

sem meus olhos 

crer 

o coração se entristeceu desta falta 

por tantos anos guardei sua volta 

como uma mulher que perdeu seu amado 

mas o que descobri já no leito de morte

foi que sempre o amor e a sorte 

estiveram bem ao meu lado

e esta carta dedico a elas 

minhas ilusões 

que decerto selam 

o destino que um dia neguei

talvez se eu tivesse ido

naquele dia sofrido

não conheceria o manto 

da história que eu mesma

costurei...

 

(sonhei com minha mãe esta noite e ela me pediu para escrever esta carta-poesia)

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