Funcionário público qualificado, restando dois anos para abraçar a sonhada aposentadoria, deveria ter motivo suficiente para comemoração, naquele dia treze de agosto de dois mil e quinze, quando completava vinte e cinco anos de efetivo exercício. Alguns fios de cabelos brancos denunciavam a marca temporal. Mas, Galdino, o Escrivão de Polícia, andava, já de muito tempo quieto, cabisbaixo, pensativo. Alguns colegas da repartição que o acompanhava por décadas, chegaram a concluir que a proximidade da aposentadoria, muitas vezes, influencia o comportamento profissional, inclusive, daqueles que, ao longo da vida, exerceram profissões estressantes que exigem uma vida intensa e atribulada. Como era versátil, brincalhão, comunicativo, era público e notório que algo o atormentava.

Na carreira policial, principalmente os Escrivães, passam por muita pressão psicológica originária de: arbitrariedade de quem comanda, plantões estressantes em finais de semana e feriados, cumprimento de prazos determinados pelo judiciário, que, diante do acúmulo de trabalho faz com que o servidor leve serviços para casa, e a essencialidade torna-se, aos poucos, uma prática cotidiana prejudicando a vida familiar do servidor. Tais questões quando vistas de fora mostram um quadro assustador, mas internamente vão se normalizando e ganhando legitimidade. Vítima desse processo, Galdino, nos últimos cinco anos, passara a contar no calendário pendurado na parede os dias que faltavam para a sua aposentadoria, num contexto em que as delegacias do interior do Estado de São Paulo trabalhavam de maneira precária, pois seus quadros eram normalmente compostos por quarenta ou cinquenta por cento de funcionários exigidos, sendo os servidores, arbitrariamente, remanejados constantemente para assumir suas funções nas delegacias deficitárias, até mesmo em outras cidades da região.

Por voltas de nove horas, tendo atendido as pessoas que o aguardavam na recepção Galdino dirigiu-se à cozinha para tomar um cafezinho, quando então desabafou com os colegas: “não há profissional que aguente, tocar 400 inquéritos, fazer todos os boletins de ocorrências da unidade, atender público, fazer flagrante, alimentar as plataformas. Estou ficando doente. Para falar a verdade, estou com medo de fazer exames e constatar problemas graves de saúde, pois tenho uma dor de cabeça muito forte a cada semana, e minhas mãos estão cada vez mais trêmulas a ponto de assustar minha mulher e minha filha quando o copo de água se estilhava ao chão”.

Seus colegas de trabalho o queriam bem e já haviam   percebido há meses a mudança de seu temperamento, estes então levaram a questão ao conhecimento do delegado, que oficiou a central, solicitando com urgência a presença de alguém que o auxiliasse  na sua árdua tarefa. Na verdade, seus superiores ficaram um tanto preocupados em perder um servidor em atividade sem peça para reposição, já que as contratações, nesse caso, são feitas via concurso público, e o governo do estado há muito tempo não publicava edital de concurso. Então a solução foi recorrer a prefeitura da cidade, que emprestou uma escriturária, que se prontificou a prestar serviços na unidade policial em caráter provisório, lembrando que já haviam outros funcionários da prefeitura prestando serviços “em caráter provisório” há dez anos em algumas unidades.

Por tudo que envolvia a sua trajetória nos últimos anos, aquele dia foi marcante: uma chuva fina caia no telhado da unidade policial, e ouvia-se de leve o barulho que fazia em sintonia as goteiras existentes, fruto das imperfeições do telhado, produzindo o compasso de uma música agradável e nostálgica apreciada naquele momento de reflexão irrepetível, por quem se acostumara conter as emoções e se deixar guiar pela razão. Era um momento inédito, pois poucas vezes, nesse trabalho exaustivo, teve tempo para reflexões, ou mesmo prestar atenção às coisas simples da vida, como o barulho da chuva no telhado.

Nesse espírito, foi-lhe apresentada pelo chefe de cartório, a Escriturária Clara Del Carmen, que passou a ser chamada carinhosamente por todos de “Carmelita”. A chegada de Carmelita trouxe novos ares à repartição pública. Tudo mudou: o astral, a alegria brotou do assoalho, e até a tensão ficou mais fácil de ser administrada.  O quadro todo que era formado por marmanjos passou a admirar aquela   garota bonita, alta, bem cinturada, olhos claros, cabelos longos, lisos e escuros,  de  vinte e cinco anos, que olhava sempre nos olhos de quem falava como que estivesse em perfeita sintonia pronunciando as palavras com leveza e sotaque Espanhol, pois ela tinha ascendência espanhola e concluído a educação básica na Argentina.

Entretanto, as condições dela exigia certo cuidado, tendo em vista que Carmelita não era concursada, portanto  não poderia registrar os boletins de ocorrências em seu próprio nome, mas fazê-los em nome do Escrivão Galdino, que, por prudência, combinou o seguinte: Nos dois primeiros dias ela deveria ficar ao seu lado apenas observando como os feitos deveriam ser formalizados. A partir do terceiro dia poderia efetuar os registros com total independência, desde que com linguagem objetiva e impessoal, fazendo apenas uma síntese em um ou dois parágrafos. Nos casos mais complexos seria acompanhada pelo Escrivão.

Ocorre que Carmelita se encantou com a narrativa utilizada pelo Escrivão, que era culto, leitor de literatura e formado em letras, e ao realizar as ocorrências ela tentava imitar as abordagens, que, a rigor, revelava falta de uniformidade, ocasionando dificuldades de entendimento. Galdino corrigia e orientava. Mas os fatos se repetiam.

Como numa delegacia, tempo é algo que um escrivão nunca tem, Galdino mudou a estratégia:

- Carmelita, preciso te contar uma história:

- Você gosta de futebol ?

- sim, gosto, por quê?

- então ouça:

- Em 1993, quando o time do São Paulo- FC se preparava para disputar o mundial de clubes, o lateral esquerdo se contundiu, e como não havia outo no elenco à substituí-lo, o mestre Telê Santana que era o técnico, promoveu um juvenil para a função e deu moral ao rapaz para jogar ali na lateral esquerda. Ocorre que toda saída de bola para um contra-ataque, o juvenil imitando os craques do time, tentava dar um bom passe, ou fazer uma tabela, porém errava sempre e tomava bolas nas costas. O mestre Telê, que era sábio, parou o treino e disse a ele: - aprenda a ser útil, roube apenas a bola, faça o que você tem de melhor, quanto a dar passes e fazer tabelas, deixe para o Miller, o Palhinha e o Ray. Não queira ser craque, aprenda apenas a ser útil, que nós seremos campeões e você chegará a seleção brasileira. Tudo aconteceu realmente como o mestre Telê previra: o São Paulo foi campeão e o rapaz chegou à seleção brasileira. Gostou dessa história?

Ato contínuo, pegou a caneta e fez as correções necessárias. Ninguém jamais soube se a história era verdadeira; mas o certo é que a moça, que era torcedora do São Paulo FC, após fixar os seus belos olhos por instantes nos olhos de Galdino com um misto de riso e curiosidade, o indagou

- Se bem entendi no vitorioso e "campeoníssimo" elenco você é o capitão Ray?

- Você está enganada, eu sou o mestre Telê Santana, respondeu.

 

 

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